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Martim Vasques da Cunha

Salman Rushdie resiste, mas atentado provou derrocada do Ocidente

Escritor lança novo romance após facadas que feriram também valores fundamentais da civilização

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] O escritor Salman Rushdie concedeu sua primeira entrevista no início deste mês após as facadas que lhe tiraram a visão do olho direito e parte dos movimentos das mãos. Acusado de blasfemar Maomé e o islã, o livro "Os Versos Satânicos", clássico do autor, sintetiza dois apogeus do pensamento, a sátira e a arte do romance, valores que o Ocidente, entre a apatia e o cinismo, vem se mostrando incapaz de proteger.

O momento exato em que o Ocidente começou a se decompor, a perder suas virtudes e a se acovardar por completo não foi com a publicação das obras de Friedrich Nietzsche e de Oswald Spengler, como pensam vários estudiosos do tema; ou com a Revolução Russa em 1917; ou com a crise financeira de 2008; ou mesmo com a eleição de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.

O fator determinante foi o episódio literário mais relevante dos últimos cem anos (depois da publicação em 1922 de "Ulysses", é claro): o decreto religioso (fatwa) emitido pelo aiatolá Khomeini em 1989, exigindo que muçulmanos matassem o escritor anglo-indiano Salman Rushdie em razão de seu romance "Os Versos Satânicos", considerado ofensivo a Maomé e ao islã.

Apoiadores de Salman Rushdie em ato em solidariedade ao escritor após atentado, em Nova York - Brendan McDermid - 19.ago.22/Reuters

Quem melhor percebeu esse ponto de declínio ocidental foi um humorista, o americano Larry David. Em seus célebres seriados de TV, "Seinfeld" (1989-1998) e "Segura a Onda" (2000-2021), ele sempre tirou um sarro dos dissabores tragicômicos sofridos por Rushdie, caçado por terroristas islamitas de forma direta (com ameaças) ou indireta (com seus editores e tradutores sendo atacados sem perdão por facadas ou cartas-bomba).

Em um episódio da primeira série, o personagem Kramer acha que encontrou Rushdie disfarçado em uma sauna, sob o pseudônimo "Sal Bass", e tenta fazer amizade com o sujeito (depois descobre-se que era apenas um sósia).

Já em "Segura a Onda", o próprio autor maldito aparece em cena e ensina a um Larry David ficcional, agora também vítima do mesmo fardo porque satirizou Maomé em um musical da Broadway, quais são as delícias de se viver com um "fatwa sex" enquanto ambos são perseguidos por algum jihadista de plantão.

"As mulheres ficam em cima. Elas sentem o cheiro do perigo e querem protegê-lo a qualquer custo. E, portanto, transam com você sem nenhum impedimento. Isto é a maravilha das maravilhas: o sexo da fatwa!", diz Rushdie a David.

Como se vê pelo diálogo, ninguém ali está preocupado com a sensibilidade de outro tipo de fatwa, desta vez do lado ocidental —a da cultura identitária. O humor existe para incomodar, para fazer pensar e para impor, por meio da sua graça, uma reflexão sobre a instabilidade dos nossos tempos. Um pouco de sexo enquanto você tem uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça não faz mal a ninguém.

Contudo, se isso fosse verdade, Rushdie não teria passado os últimos 34 anos de sua vida sempre olhando para trás de seu ombro, como se uma sombra o perseguisse o tempo todo. Ele não foi condenado somente por blasfemar contra os fundamentos de uma religião (de acordo com seus inimigos). Foi condenado porque, por meio de seu livro (e da sua obra por extenso), defendeu as duas colunas primordiais do Ocidente: a sátira e a arte do romance.

O escritor Salman Rushdie após atentato que lhe tirou a visão do olho direito, em foto postada no Twitter em 7/2/2023
O escritor Salman Rushdie em primeira imagem pública após atentado que lhe tirou a visão do olho direito, em foto postada no Twitter em 7/2/2023 - Twitter/Reprodução

A sátira não envolve propriamente o humor, mas sim uma espécie de qualidade de alma mais sofisticada —no caso, a ironia que nos surpreende, nascida principalmente das reviravoltas filosóficas de Sócrates na Grécia antiga. Não é o riso desbocado, mas sim o sorriso sutil, pleno de astúcia.

Por outro lado, a arte do romance, surgida com François Rabelais, Laurence Sterne e Miguel de Cervantes, alçou essa mesma ironia para um outro patamar de diversão, transformando-a no humor que tanto prezamos. É a gargalhada que vem com o absurdo da existência —e articulada por meio de uma abertura de consciência que só a palavra escrita pode nos ofertar.

Ora, o livro "Os Versos Satânicos" é a síntese de tudo o que foi descrito acima —e por isso se tornou uma obra maldita. Amarrando as pontas soltas de Rabelais com Joyce (e um tempero de Thomas Pynchon e William Blake), Rushdie conta a odisseia de duas personalidades do mundo artístico indiano, o ator Gibreel Farishita e o dublador Saladin Chamcha, que sobrevivem miraculosamente à queda de um avião vítima de ataque terrorista. Ambos se metamorfoseiam, respectivamente, em um anjo e um diabo, e passam a transitar entre os diversos níveis sociais de Londres.

O pomo da discórdia entre Rushdie e o líder religioso do Irã foi que, em uma das partes do romance, Gibreel tem alucinações de que ele é o arcanjo que ditou a Maomé os perturbadores "versos satânicos" —uma referência ao fato de que o profeta foi obrigado a romper temporariamente com o monoteísmo de Alá, concedendo força ao politeísmo de três deusas (al-Lat, al-Uzzá e Manat), para assim impedir que os novos fiéis recusassem de vez a revelação islâmica.

Os estudiosos seculares alegam que Maomé fez isso por puro pragmatismo, e este é o ponto de vista também aceito por Rushdie. Portanto, na ficção, Gibreel assume tanto a figura de anjo como a do demônio, pois o profeta depois argumentará aos seus seguidores que foi tentado por Satã ao declamar essa parte bastante problemática do Corão.

Esta ambiguidade ao recriar o relato de um evento teológico, feito na esfera da arte do romance, disparou a fatwa contra Rushdie. Sua "blasfêmia" é uma atitude tipicamente ocidental, algo incompreensível para alguém enraizado no paroquialismo religioso.

E não se trata de uma exclusividade do jihadismo: é só lembrar quando os fundamentalistas cristãos apoiaram a censura contra a comédia "A Vida de Brian" (1979), do grupo Monty Phyton, e o drama "A Última Tentação de Cristo" (1988), de Martin Scorsese, ambos recriações heterodoxas dos Evangelhos.

Milan Kundera defendia, ao comentar no livro "Os Testamentos Traídos" a polêmica ao redor de Rushdie, que o escritor não blasfemou e nem sequer atacou o islã —na verdade, teria escrito algo que, para o espírito teocrático, pertence a um outro planeta e a um "outro universo fundado sobre uma outra ontologia". E o que seria esse outro reino? A resposta é aparentemente simples, porém há nela um segredo muito bem guardado: o do exílio.

Nesse sentido, a obra de Salman Rushdie, e em especial "Os Versos Satânicos", é uma dolorosa meditação sobre como a ruptura, o desenraizamento, a desolação, o desterro —enfim, a experiência de ser alguém permanentemente deslocado— são eventos que não só fazem parte da modernidade em si, mas sobretudo da nossa natureza humana.

É isso o que incomoda o homem teocrático, angustiado por reencontrar um fundamento que desapareceu por completo. Isso não significa, entretanto, que não exista uma verdade na nossa existência, mas sim que essa mesma verdade é a que o provérbio judaico sempre nos avisou: "Deus ri enquanto fazemos planos".

O humor intrínseco à arte do romance se origina da ironia socrática que é a própria base do Ocidente. Não à toa, Roger Scruton comentava que ela nos possibilitava o exercício da autocrítica. A blasfêmia religiosa está inclusa nesse processo.

Ora, ser um exilado em qualquer parte do mundo é viver em antagonismo consigo mesmo e com os outros o tempo todo. Apesar do drama inegável deste tipo de situação, o desterrado se permite escutar as diversas vozes que estão dentro de si e ao seu redor, pois é a sua única forma de sobrevivência.

O próprio Rushdie teve de viver essa ironia na carne, sem nenhum romantismo, conforme ele relata nas suas admiráveis memórias dos tempos da fatwa, "Joseph Anton" (2012).

O título é uma brincadeira com os nomes de Joseph Conrad e Anton Tchékov, dois autores que sempre mantiveram um estado de graça mesmo sob a mais extraordinária das pressões, e foi usado como codinome para identificar Rushdie na equipe de segurança que o protegia.

E, como acontece nos livros desses escritores, Rushdie também não deixa escapar nenhum evento importante desse período, todos registrados em uma perspectiva implacável e ao mesmo tempo benevolente: os seus dois amargos divórcios, os seus adultérios, o medo de morrer, a sensação de ser um estorvo para os amigos e, sobretudo, a covardia do meio intelectual que deveria ampará-lo.

É aqui que o humor deve ser usado para entender o exato momento em que o Ocidente tal como conhecíamos foi para o brejo. Ao invés de defenderem Rushdie pelos ataques que sofria, escritores e intelectuais de gabarito como John Le Carré, George Steiner, Doris Lessing, e até mesmo políticos como John Major e o então príncipe Charles, afirmaram ou sugeriram que a fatwa era consequência de Rushdie ter provocado o Islã.

Criou-se uma espécie de "nova síndrome de Vichy" (o termo de Theodore Dalrymple é uma referência à invasão quase voluntária que a França sofreu dos nazistas), na qual a rendição espiritual de nossos princípios se tornou a única regra absoluta.

Foi uma situação tão absurda que, como diria o vulgo, era rir para não chorar. Rushdie, contudo, se manteve resoluto. Conforme escreve em sua autobiografia, ele lutava pela "liberdade de expressão, pela liberdade da imaginação [...] e também a favor do ceticismo, da irreverência, da dúvida, da sátira, da comédia, da alegria profana", sabendo que estava disposto a morrer, se necessário fosse, por aquilo que acreditava ter realizado: "Um puta livro".

E o fato indubitável é que "Os Versos Satânicos", apesar de todas as fatwas (as nossas e as dos jihadistas), é um livraço, um dos grandes romances do nosso tempo. Entre as mutações que ocorrem com Gibreel Farishta e Saladin Chamcha e as questões que consomem o profeta Maomé, o exílio descrito ali não é apenas divertido como também comovente.

Nas últimas páginas da obra, Rushdie faz o imigrante Chamcha retornar para a sua Índia tão desprezada e se reconciliar com ela ao velar pelo pai, com quem tinha um relacionamento conturbado. Ao olhar para o rosto dele antes de falecer, Chamcha se pergunta se a lição derradeira do exílio não seria "aprender a morrer com dignidade".

Salman Rushdie viveu diretamente essa questão ao ser esfaqueado em 12 de agosto do ano passado em Nova York durante uma palestra, tentativa felizmente malsucedida de cumprir a maldição determinada pelo aiatolá há mais de três décadas.

Com o atentado, ele perdeu a visão do olho direito e parte dos movimentos das mãos. E o que é pior para um escritor que sempre lutou pela liberdade: voltou a viver em reclusão absoluta, cercado por equipes de segurança. Acabou impedido de fazer a turnê mundial de lançamento de seu novo romance, "Victory City", publicado neste mês.

Enquanto isso, o Ocidente, salvo as exceções de praxe, permaneceu calado ou então proferindo os clichês de sempre ("tolerância", "pluralismo", "pensamento livre").

Se a nossa civilização não consegue sequer proteger um pobre escritor e garantir que ele possa praticar o que realmente importa, o seu tão sagrado "fatwa sex", como profetizou Larry David, então o que será de nós?

Neste estado de permanente desgraça, sem dúvida segurar a onda da barbárie é o que nos resta.

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