Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Agosto

Ainda existe uma sociedade plural, pelo menos ali, no umbigo da megalópole

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Pego a ponte das 11h para São Paulo. O voo chacoalha, eu rezo e chego bem. Enquanto o táxi se arrasta pela 23 de Maio, assisto a “Greg News” no celular.

O programa aborda a virada orgânica do Movimento Sem Terra e o veto de João Doria à realização da feirinha de produtos agrícolas livres de veneno, organizada pelo MST. Para o governador, não há diálogo possível com foras da lei.

Conforme me convenço dos argumentos de Gregorio Duvivier, contrários à proibição, a lembrança da invasão da Embrapa, do discurso inflamado de Stedile na Venezuela e do de Lula, ameaçando pôr o exército de Stedile nas ruas, reaviva, na memória, as razões que me afastaram do MST.

Mas, mesmo com o pé atrás, a ocupação de propriedades improdutivas, com décadas de dívidas acumuladas de imposto territorial, nunca deixou de me parecer justa. 

Tachar de criminosas famílias e famílias de assentados, negando a essas pessoas qualquer possibilidade de escuta, só agrava o ressentimento, a violência e a discriminação.

Num país com problemas insolúveis de habitação e saneamento, que enfrenta uma crise de desemprego ímpar e ocupa lugar de destaque na lista das sociedades mais desiguais do planeta, a questão da terra, bem como a de áreas abandonadas dos centros urbanos, deveria contar com a atenção e o respeito das autoridades.

Mas não, caminhamos para criminalização dos movimentos sociais. A virulência com que o MST é xingado de terrorista e assassino por Doria e Joice Hasselmann, no “Greg News”, chega a dar engulho. 

A retórica do governador e da congressista não difere, em ódio, da ameaça de retaliação do exército do Stedile. É como se não existisse meio termo possível. 

Sei que me interessar pela guinada orgânica do MST, que dotar de humanidade a multidão dos sem nada e me chocar com a intransigência de Doria e Joice, sei que tudo isso me candidata ao posto de “comunistinha” abjeta da “esquerdopatia caviar”. 

E sei, também, que sentir rejeição ao discurso aguerrido de Lula, conclamando os soldados de Stedile à batalha, me condena ao rótulo de burguesa fedida da elite detestável. 

E foi pensando na ausência de um campo comum entre essa ou aquela vertente, que caminhei pela avenida Paulista, numa noite fria de agosto. A rua tomada de estudantes, executivos, secretárias e boys, um entra e sai frenético do Masp, dos edifícios comerciais e dos centros de cultura recém-abertos. 

E vendo a avenida tão viva, pensei que ainda existe uma sociedade plural, pelo menos ali, no umbigo da megalópole, capaz de fazer frente à mentalidade extremada que rachou o país em mil.

A Paulista da minha juventude era triste, brega, com galerias de comércio decadentes e arranha-céus de escritórios. Com exceção do vão da Lina, nada pulsava ali, ao contrário de agora.

Na ilustração, há o Masp no fundo e pessoas caminhando e andando de bicicleta na frente. Algumas palavras estão sobrepostas, como IMS, Masp, Japan House, livraria Cultura, livraria Martins Fontes, Casa das Rosas, Sesc Paulista e outras que se fundem à ilustração
Publicada neste domingo, 8 de setembro de 2019 - Marta Mello/Folhapress

E é preciso reconhecer que o renascimento da via se deve, em grande parte, ao seu fechamento para os carros aos domingos. Medida tomada por um prefeito, perdão, petista, que devolveu a rua aos pedestres. Medida benéfica, turbinada pela inauguração de institutos culturais financiados pela força da grana que ergue e destrói coisas belas.

Política social, urbanismo, cultura e iniciativa privada. É preciso dialogar, Doria. 

Enquanto isso, o Rio de Janeiro, atual túmulo do samba, fenece falido nas mãos dos que pregam o extermínio seguido da salvação eterna.

Com as ruas desertas, dois ex-governadores atrás das grades e outros dois no prende e solta, a cidade caminha para fechar as portas do Museu do Amanhã, do Museu de Arte do Rio e da Cidade das Artes por 
falta de verbas de manutenção.

Nesse Rio, uma pequena praça de Ipanema foi batizada com o nome do meu pai, Fernando Torres. É um largo que vivia às escuras, até ser adotado por alguns moradores. 

Um desses com teto, proprietário de um food truck, fez dali um ponto e, junto com o dono da floricultura existente, investiu em iluminação, pintura, promoveu noites de música e criou o Ninho dos Livros, dedicado à permuta literária, ressuscitando a praça.

A prefeitura proibiu tudo, preferiu dar ouvidos aos que se incomodavam com o barulho, apesar do respeito à lei do silêncio. Nem o abaixo-assinado com mais de 300 apoiadores deu jeito. O largo, hoje, é mais um pedaço morto de Ipanema.

Mas isso é nada, comparado à batida de Crivella na Bienal do Livro, a fim de recolher os perigosíssimos gibis de dois heróis gays da Marvel. Que se danem os milhares de pessoas que compareceram em massa ao evento. Hay cultura, soy contra.

Cadê Lina Bo Bardi para peitar esse bando de Savonarolas?

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