Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Cala a boca já morreu?

Processo de deslegitimação do trabalho da imprensa segue a todo o vapor

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Comemorado no domingo (3), o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa registrou atos de violência, física e verbal, contra jornalistas que cobriam manifestação de apoio ao presidente em Brasília.

Na terça (5), no cercadinho em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro deu o seu show quando, ao ser questionado sobre as mudanças na Polícia Federal, mandou os repórteres que ali estavam calarem a boca.

Ilustração Carvall para coluna Ombudsman publicada no dia 10 de maio.
Carvall/Folhapress

Com uma imagem que reproduzia a primeira página da Folha, chamou o jornal de "canalha", "patife" e "mentiroso". Bolsonaro alegava não ter interferido na Polícia Federal, algo que ele mesmo defendera como um direito seu.

Na quinta-feira (7), a secretária especial de Cultura, Regina Duarte, em entrevista à CNN Brasil, reagiu mal ao ser apresentada a um vídeo em que era cobrada por seus feitos na secretaria.

Mais uma vez, sobrou para o jornalismo. A atriz disse que não queria ouvir os questionamentos, disse que estava sendo obrigada àquilo pelos jornalistas ("quem é você?", perguntou a atriz à âncora) e acrescentou que não havia sido combinado nada daquilo.

Um dia depois, o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, uma espécie de mentor de parte do Exército, de Bolsonaro e de bolsonaristas, foi às redes sociais defender a atriz e aproveitou para estocar a imprensa.

Disse que ficou encantado com a forma como a atriz se desvencilhou das "armadilhas" que tentaram impor-lhe, chamou de desrespeitosa a atitude dos âncoras e questionou: "De qual instância alguns jornalistas retiram a autoridade de agirem como membros de um tribunal de inquisição, dispensando-se de princípios básicos de civilidade?!".

Semana bem difícil para a imprensa.

Questionar a autoridade dos jornalistas por desempenhar a sua função, que é fazer perguntas, resume bem o modo como a imprensa é entendida hoje pelo presidente, por seu entorno e por parte dos formadores de opinião.

Os ataques lembram bastante o mundo da caserna e parecem seguir uma estratégia militar.

São cometidos por pessoas que têm como expectativa inspirar medo e "respeito" a quem se dirigem, que não admitem contraditório e que parecem seguir a máxima de que uma guerra (cultural ou contra uma pandemia) não se ganha só com superioridade bélica, mas com o controle forte da narrativa.

A visão joga a imprensa automaticamente para o campo inimigo, e a primeira vítima certamente é a informação.

O desconforto com perguntas e manchetes feitas pela imprensa não é novo e é comum a autoridades públicas, empresários, artistas e a representantes do chamado mercado financeiro, sobretudo quando a imprensa aborda assuntos que preferiam ver esquecidos.

Mas o despudor de agir com tanta virulência em períodos democráticos é inédito.

Após o "cala a boca", Bolsonaro ensaiou um pedido de desculpas, válido apenas até o chilique seguinte.

Regina Duarte limitou-se a reagir como se não soubesse que jornalistas fazem perguntas que, se seguirem a prática esperada, sairão do script montado pelo entrevistado, com a liberdade que lhe é concedida de não responder.

E como reage a imprensa?

Editoriais são escritos, associações de imprensa e autoridades lançam notas de repúdio e tudo segue até o próximo ataque.

E ele vem. No fim da semana, foi a vez do governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL). Pressionado a prestar contas da compra de 200 respiradores que não chegaram ao estado, o 'Comandante Moisés' se disse alvo da mídia em uma reunião virtual com empresários e sugeriu ao grupo de potenciais anunciantes "responsabilizar esses veículos".

Na tática de guerra, o processo de deslegitimação do trabalho da imprensa está em curso, a todo o vapor, numa tentativa de ferir de morte, além do bolso, a sua credibilidade.

Mas não estamos em guerra e é preciso assegurar que o "cala a boca" morreu mesmo e que o seu fantasma não nos assombra.

Os jornais têm que fazer jornalismo. Precisam parar de repetir de modo automático que a fala do governador de Santa Catarina foi apenas um "desabafo" e, claro, aprofundar as reportagens investigativas, seja sobre respiradores comprados a peso de ouro e não entregues, seja sobre a paralisia que afeta a Cultura, seja sobre os interesses em torno da Polícia Federal do Rio de Janeiro.

Uma charge de João Montanaro publicada pela Folha em abril resume bem o Dia da Marmota vivido pela imprensa: Agora ele passou dos limites! Não, agora ele passou dos limites! Espera, agora ele passou dos limites! Não agora ele passou dos limites!

Que a gente consiga sair disso. Não será trivial.

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