Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Herói pelas circunstâncias

Focada em desfazer armadilhas, imprensa pouco questionou planos de Mandetta

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Um leitor diz que a Folha falhou ao cobrir a performance do Ministério da Saúde no combate ao coronavírus.

Segundo esse leitor, a imprensa se comportou de maneira irresponsável ao não cobrar mais do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, transformando-o em herói.

 Ilustração de Carvall para coluna da Ombudsman de 19.abr.2020, nela um frasco caido, dentro dele um liquido vermelho, a tampa amarela.
Carvall

Além do isolamento social necessário, diz o leitor, o ministro deveria ter construído um programa consistente de testagem da população, como fez a Coreia do Sul.

Na minha opinião, a Folha e os outros grandes jornais têm feito uma boa cobertura da pandemia. Certamente há deslizes, sobretudo nos momentos em que a Folha embarca na politização da saúde.

No geral, porém, o jornal tem informado o avanço da doença, explicado os mecanismos de transmissibilidade e demonstrado as condições de trabalho dos profissionais de saúde e a situação dos hospitais.

O jornal também tem acompanhado a trajetória da pandemia em diferentes países, mostrando que aqueles que aplicaram medidas menos restritivas tiveram mais dificuldade para enfrentar a doença, em face do colapso dos serviços de saúde.

Quanto a Mandetta, um bom perfil do ministro que até bem pouco tempo ninguém sabia quem era foi produzido no fim de fevereiro pelo jornal Valor Econômico, que o qualificou como alguém que "se movimenta para atender aos interesses do governo e satisfazer demandas corporativas".

Um mês depois, também em um perfil, a Folha classificou Mandetta como "novo herói de centristas e progressistas".

Em crítica interna, apontei que a responsabilidade na construção do personagem não era só do leitor mas também do jornal, que levara tempo para fornecer mais informações sobre o político.

Não acho que a Folha o tenha poupado. A figura que recuou, negociou com os interesses eleitorais e ideológicos do presidente e adaptou respostas para agradar-lhe foi mostrada pelo jornal.

A questão é que, percebido como reserva de racionalidade em meio aos equívocos cometidos pelo presidente da República, Mandetta teve a figura de herói forjada pelas circunstâncias e acomodada nas páginas dos jornais.

A cobertura jornalística acabou se concentrando em desarmar as bombas de fumaça lançadas diariamente pelo presidente em vez de perguntar a Mandetta qual, afinal de contas, era o seu plano de combate à doença.

"Diga que não pode convocar manifestação, ir à padaria ou apertar a mão de velhinhas", pareciam pedir os repórteres nas coletivas de imprensa a um Mandetta carismático e bom de comunicação.

Em termos de ação, o ex-ministro seguiu as diretrizes internacionais ao recomendar o isolamento social, que, como ele mesmo explicou inúmeras vezes, serviria para evitar o esgotamento do sistema de saúde ao diminuir a quantidade de infectados e, portanto, de doentes graves que precisem de cuidado hospitalar.

Mas e depois? Questões importantes acabaram eclipsadas pelo jogo político e pelas tentativas diárias—de ambos, Mandetta e imprensa—de esclarecer falas e gestos tresloucados do presidente, gastando muito das energias que poderiam ter sido empregadas buscando esclarecimentos.

Não vejo, porém, irresponsabilidade da imprensa. Há perguntas sobre as quais mesmo os especialistas têm dúvidas: quando o governo deveria ter se preparado para a testagem em massa? No início do ano havia testes, insumos disponíveis ou estrutura de produção?

É fato que, hoje, por falta de testagem e pela lentidão imensa (e que ainda não foi explicada) no processamento de testes já feitos, são muitos os casos de subnotificação e, nesse sentido, caminhamos no escuro.

O presidente escolheu um novo ministro da Saúde da sua confiança e cabe à imprensa questionar a estratégia de enfrentamento da doença e explicá-la ao leitor.

Dada a ênfase que Nelson Teich colocou na testagem, é preciso entender como essa política será conduzida, o que tem sido feito para produzir e comprar mais testes e com quais recursos materiais e de pessoal isso vai ocorrer.

Há, no entanto, outras questões relevantes. Além de testes, o país precisa de mais UTIs, respiradores, pessoal de saúde com bons equipamentos de proteção individual. Vários países da América do Sul têm estatísticas diárias sobre número de UTI, respiradores, testes, tipos de casos e até de máscaras. Teremos isso ?

Na cobertura do Ministério da Saúde, o objetivo não é erodir a confiança na autoridade sanitária, o que, durante uma pandemia, pode ser prejudicial ao interesse público e colocar vidas em risco.

Mas os jornais precisam, evitando a política mais rasteira, avaliar uma estratégia de saúde pública (ou a falta dela) sem condescendência.

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