Glenn Greenwald

Jornalista, advogado constitucionalista e fundador do The Intercept

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Glenn Greenwald

Fantástico viola dever jornalístico ao veicular propaganda pró-Israel

Reportagem sobre 100 dias da guerra apresenta defensor do país como fonte neutra e exclui perspectiva palestina

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A edição do último domingo (14) do Fantástico apresentou uma rápida e conveniente retrospectiva dos 100 dias da guerra entre Israel e Hamas. A matéria, em seu conjunto, é uma peça declarada de propaganda do governo de Binyamin Netanyahu, como vem sendo o grosso da cobertura da guerra pelo grupo Globo e pela grande mídia brasileira.

Desde o início, o teor da reportagem é idêntico à propaganda israelense. A repórter estava em Tel Aviv, mas não em qualquer parte da Palestina. No que diz respeito às acusações formais de genocídio contra Israel apresentadas à Corte Internacional de Justiça pela África do Sul, o programa incluiu apenas um representante de Israel, junto com Netanyahu, defendendo o caso, mas ninguém defendendo a acusação de genocídio foi ouvido.

Criança palestina em meio a imóveis destruídos nos arredores de Khan Yunis, na Faixa de Gaza, região alvo de bombardeios israelenses - 16.jan.24/AFP

A retórica da matéria incluiu imagens explícitas e emocionais de muitos israelenses feridos ou mortos em 7 de outubro, mas quase nada sobre civis palestinos mortos ou mutilados, um número cerca de 50 vezes maior. Nada foi dito sobre os milhares de palestinos mortos por Israel antes dessa data nem sobre os horrores da ocupação israelense da Cisjordânia e do seu bloqueio de quase duas décadas a Gaza.

O jornalismo da matéria também foi impreciso ao afirmar inequivocamente que a explosão do hospital Al-Ahli foi causada por um foguete do Hamas, o que ainda está em disputa na mídia internacional: tudo para retratar Israel como vítima.

A matéria também reproduziu de forma acrítica as alegações israelenses de que o hospital Al-Shifa era usado pelo Hamas, embora a maioria dos jornais tenha concluído não haver evidências que sustentem as afirmações de Israel sobre o que ali existia.

Pior ainda, o Fantástico, para concluir a reportagem, convidou um único "especialista em Oriente Médio" para "analisar o que se pode esperar da guerra daqui em diante". A se julgar pelo título de "especialista em Oriente Médio", André Lajst seria um agente neutro que analisa imparcialmente os fatos. Porém, os experts que o jornalismo tradicional nos apresenta têm, muitas vezes, uma agenda muito bem-definida, mas oculta. É justamente o caso de Lajst.

Formado em Israel, foi também acadêmico da Força Aérea do país, no departamento de pesquisa e operações de inteligência. Ele é também presidente-executivo da Stand With Us Brasil, braço brasileiro de uma organização cujo objetivo declarado é apresentar e defender os valores do Estado de Israel em todo o mundo.

O espectador desavisado sai da experiência convencido de que foi visitado por um sujeito que pode falar, com mediação e equilíbrio, sobre o ataque promovido pelo Hamas em Israel e os subsequentes massacres que o país promove há meses na Palestina. Mas esse "especialista" era tudo menos neutro: é abertamente um ativista pró-Israel.

É preciso então perguntar o que aconteceria se um acadêmico e ex-militar formado na Palestina —ou em qualquer país árabe—, presidente de uma organização de disseminação dos valores árabes, fosse convidado ao Fantástico para comentar a guerra como seu único especialista neutro?

Chamar um porta-voz dos interesses de Israel para fazer comentários na televisão aberta é justificado, desde que ele seja honestamente descrito. Lajst, inclusive, já publicou artigos de opinião neste jornal, em que identifica abertamente sua posição, inclusive seu papel no grupo ativista pró-Israel.

A Federação Árabe Palestina do Brasil é uma organização proeminente que se manifesta com frequência a favor da causa palestina. Esse grupo criticou veementemente a decisão do Fantástico de —nas palavras desse grupo— "dar espaço para o propagandista do apartheid e articulador do lobby sionista no Brasil, e nada de representação palestina em 100 dias".

Hisham Alqam, coordenador-geral dos comitês Palestina Democrática na América Latina, acrescenta: "Israel está matando muitos dos reféns com seus bombardeios. Está destruindo bairros inteiros. Todos os que estão nestes locais morrem: israelenses, palestinos, guerrilheiros, reféns. Para encerrar a guerra em dois ou três meses, Israel quer dizer que, neste tempo, todos os reféns serão mortos".

Essa perspectiva do lado palestino foi excluída da reportagem em favor de inúmeros discursos israelenses.

Todo jornalista insiste que está apenas divulgando as notícias de forma neutra. É a mitologia central do jornalismo. Mas isso é, muitas vezes, uma fraude e o público sabe disso. Os jornalistas podem e devem lutar pela objetividade, mas nenhum de nós pode escapar totalmente da nossa estrutura de preconceitos e crenças.

Sabendo disso, jornalistas honestos têm a obrigação de incluir em suas reportagens —especialmente quando se trata de uma questão de opinião, não de um fato verificável— ambos os lados de um debate acalorado.

Mascarar um ativista de um lado desse debate como um "analista neutro", evitando que o outro lado seja incluído, é uma violação direta dos deveres jornalísticos. A reportagem do Fantástico falhou lamentavelmente —e mesmo radicalmente— em suas responsabilidades jornalísticas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.