Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Ruy Castro erra ao não enxergar influência da Jovem Guarda na música brasileira

O imortal, um grande pesquisador, não gosta de rock nem de iê-iê-iê e transforma o desgosto em tese furada

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Em coluna no último sábado (3), o jornalista Ruy Castro, um dos mais competentes biógrafos e pesquisadores musicais brasileiros, cometeu um deslize. Ao comentar uma entrevista da cantora Wanderléa nesta Folha, Ruy disse que "a Jovem Guarda nunca foi um movimento, nem mesmo musical".

O texto de Ruy fez eco a posicionamentos históricos do autor, externado em entrevistas e palestras. Uma dessas manifestações aconteceu em 2016, quando Ruy foi ao programa Roda Viva, da TV Cultura, divulgar seu então mais recente livro, o "A Noite do Meu Bem: A História e as Histórias do Samba-canção".

A cantora Wanderléa - Marlene Bergamo/Folhapress

Ao responder uma pergunta do jornalista Julio Maria sobre o fato de a Jovem Guarda ter escanteado o samba-canção nos anos 1960, Ruy foi taxativo: "[A Jovem Guarda] foi um fenômeno absolutamente passageiro. Primeiro porque aquilo foi uma coisa inventada por duas ou três pessoas, com apoio de algumas rádios", disse.

"Era uma música infantil, primária, evidentemente atingia uma quantidade maior de pessoas. Mas esse tipo de música, até pela sua própria insignificância, foi sufocado pelas músicas de festival e pelo tropicalismo. Jovem Guarda é o nome que se dá hoje. Na época era chamado de iê-iê-iê mesmo, uma coisa bem reles. Foi uma coisa que durou de 1966 a 1967 e foi logo eliminada".

Ruy briga com os fatos, como se a Jovem Guarda não tivesse marcado profundamente a sociedade brasileira. Se a Jovem Guarda não foi nem mesmo um movimento musical, como explicar a imensa influência que ela teve em todo o país?

Na semana em que Ruy proferiu seu veredito, fui a uma festa na periferia de Recife em que metade do tempo tocou música brega à la Reginaldo Rossi. Não haveria brega como o conhecemos sem a Jovem Guarda.

Ruy insiste que o tropicalismo superou a Jovem Guarda. Mas haveria tropicalismo sem a Jovem Guarda? É muito improvável. Hoje parece até que quem enfrentou a barra pela inclusão da guitarra na música brasileira foram os baianos tropicalistas.

Mas quem bancou a guitarra foram os jovem-guardistas, e para um público muito mais amplo. O mérito da tropicália foi, entre outros, o de abrir os ouvidos das classes médias de esquerda para o som estridente do instrumento, chamado na época de "imperialista" e "alienante" pelos mais intolerantes.

Grande parte dos gêneros populares do Brasil após os anos 1960 devem à Jovem Guarda. Sem ela, dificilmente haveria Raul Seixas, nosso maior ídolo do rock. Antes da fama, o roqueiro baiano chegou até a acompanhar Roberto Carlos com sua banda Raulzito e os Panteras.

Da música brega ao rock Brasil dos anos 1980, dos nordestinos modernos dos anos 1970, como Alceu Valença e Zé Ramalho, aos sertanejos dos anos 1990, como Chitãozinho e Xororó e Zezé Di Camargo, todos foram indelevelmente marcados pela Jovem Guarda.

Haveria manguebeat pernambucano dos anos 1990 sem a Jovem Guarda? Dificilmente, já que uma das bandeiras de Chico Science e seus amigos era a mistura do maracatu com os overdrives incrementados da guitarra de Lucio Maia. Tudo isso só foi possível pela abertura sonora, estética e de costumes inauguradas pela Jovem Guarda.

Ao relevar tudo isso, Ruy Castro flerta com o terraplanismo sonoro e mostra-se distante da realidade musical brasileira. O imortal não gosta de rock nem de iê-iê-iê e transforma o desgosto em tese furada. Uma pena, um grande pesquisador traído pelo seu ouvido.

Ignoremos esse equívoco e não deixemos de ler Ruy Castro. Livros como "Chega de Saudade: a História e as Histórias da Bossa Nova", "Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues", "Metrópole à Beira-Mar: O Rio Moderno dos Anos 20" e "Carmen: Uma Biografia" são obras-primas.

Não é porque ele se equivoca em um aspecto que precisamos jogá-lo no lixo, como ele faz com a Jovem Guarda. Ruy é um verdadeiro imortal, e nossa vida não precisa de mais essa polarização.

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