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Carlos Adriano

Pasolini, cristão, gay e marxista, expressou sua genialidade na subversão

Cineasta e escritor italiano, nascido há 100 anos, foi artista literário e intelectual militante

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Cena de 'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' (1975), de Pier Paolo Pasolini

Cena de 'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' (1975), de Pier Paolo Pasolini Reprodução

Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

[RESUMO] Genialidade de Pier Paolo Pasolini, cujo nascimento completa cem anos neste sábado (5), era da ordem da inconveniência, escreve autor. Escritor, intelectual e cineasta, Pasolini foi cristão, marxista e gay e produziu uma obra icônica que, quatro décadas depois do seu assassinato, permanece como um imã para o engajamento na arte e na transformação da sociedade.

Nunca pensei que estaria vivo no centenário de nascimento de Pier Paolo Pasolini, que se celebra neste sábado (5).

Há 40 anos, eu era um mero e reles calouro de uma universidade informal de cinema cujo campus paulistano era composto de um circuito esgarçado de cineclubes (Bixiga, Bijou, Fundação Getulio Vargas, Museu Lasar Segall, Museu da Imagem e do Som, Sindicato dos Jornalistas) e das programações da Cinemateca Brasileira instaladas em salas comerciais, como os cines Coral e Metrópole, e instituições como o Centro Cultural São Paulo e o Masp.

Quando entrei no curso de cinema da Escola de Comunicação e Artes da USP, quatro anos depois (1986), eu já havia visto praticamente todos os filmes que os professores exibiriam nas aulas, justamente por ser o que se chamava então "rato de cinemateca".

A vida do cinéfilo hoje é bem mais fácil e cômoda. Além de ter quase toda a história do cinema disponível ao alcance dos dedos de um rato —o mouse do computador—, não é necessário enfrentar as sofríveis condições de projeção dos filmes, exibidos em cópias (em película 16mm e 35mm) que circulavam nos cineclubes após sua expiração de distribuição comercial.

Todo sacrifício era compensado para ver os filmes ansiosamente aguardados —e cultuados virtualmente em páginas de livros e revistas (em sua maioria estrangeiros). Um dos diretores que mais faziam valer a pena o sacrifício, até por seu caráter de mártir, era o italiano Pasolini.

Genial ou genioso? A militância intelectual combativa e a violenta morte trágica de Pasolini fazem pensar na ideia de fama póstuma, descrita por Fernando Pessoa no ensaio inacabado "Heróstrato": "Quanto mais nobre o gênio, menos nobre o destino. Um gênio pequeno alcança a fama, um grande gênio recebe a infâmia, um gênio maior sofre o desespero; um deus é crucificado".

A genialidade ou geniosidade de Pasolini eram da ordem da inconveniência. O gênio é uma falha do sistema (Paul Klee), uma neurose (Gustave Flaubert) e o desespero dominado pelo rigor (Jean Genet). Pasolini talvez seja o caso mais icônico (com todo ranço e clichê que o vocábulo encapsula) da inadequação de um certo tipo de cinema aos tempos de hoje.

O dele era um outro tempo, o dele era um outro cinema; incomparáveis com este nosso tempo e com o cinema produzido hoje. Aliás, é cinema o que se chama hoje de "audiovisual"?

Pier Paolo Pasolini era mais que um autor completo (e complexo) —escritor, poeta, polemista, cineasta. Era cristão, marxista e gay —heresia pura. Encarnação de um tipo emblemático e subversivo dos anos 1960 e 1970, era um intelectual militante, nas hostes da arte e da política, comprometido com o desejo de uma sociedade melhor, mais justa, fraterna e humana.

Naquele tempo de minha iniciação cinefílica (em 1980), o assassinato de Pasolini (2 de novembro de 1975) era relativamente recente —talvez por isso, me espanto em estar escrevendo aqui e agora sobre os cem anos dele. O nome de Pier Paolo Pasolini (seu eco de três PPPs) era um ímã, uma senha (palavra-passe de mágica para um mundo que se descortinava?), um chamado de engajamento na arte e na sociedade.

As cópias em frangalhos de suas obras-primas convertiam qualquer sessão de cineclube em uma missão hierática. Ver "O Evangelho Segundo São Mateus" (1964) era como testemunhar o milagre da transubstanciação, escancarado com o impacto de sua trilha sonora, que combinava Bach (Concertos, "Missa BWV 232" e "A Paixão de São Mateus"), Mozart ("Maurerische Trauermusik K. 477") e Prokofiev (trilha de "Alexander Nevsky", 1938, Sergei M. Eisenstein), a cantora afro-americana Odetta Holmes ("Sometimes I Feel Like a Motherless Child"), Blind Willie Johnson ("Dark Was the Night, Cold Was the Ground"), "Kol Nidre" (peça aramaica de tradição judaica na liturgia do Yom Kippur) e o hit da "Missa Luba" do Congo.

Outra experiência dessacralizadora era acompanhar o comediante Totò (ícone das chanchadas italianas) e o ator Ninetto Davoli (signo de um cinema popular idealizado por Pasolini) seguindo um corvo marxista em "Gaviões e Passarinhos" (1966). Essa fábula, talvez ingênua ao olhar cinéfilo de hoje, escandalizaria os ministérios da educação e da cidadania do atual governo brasileiro.

"Teorema" (1968) também seria o horror de Damares et caterva, com sua pedagogia libertária: Terence Stamp é um anjo exterminador da tradição, família e propriedade, que desce da goiabeira para comer uma família burguesa inteira (os filhos, a mãe e o pai patrão industrial) e conclamar à revolução capitaneada por Herbert Marcuse e Wilhelm Reich.

Terence Stamp e Silvana Mangano em cena de 'Teorema' (1968), de Pier Paolo Pasolini - Reprodução

Pasolini também realizou várias outras obras magníficas, pequenas em extensão e longevas em projeção. Como "A Ricota", episódio do filme "Rogopag" (1963), sobre o faminto figurante de um filme sobre a crucificação de Cristo (dirigido por um cínico Orson Welles). Devastadoramente irônico e simplesmente implacável. Ou "O Artigo dos Vaga-lumes" (publicado no Corriere della Sera de 1º de fevereiro de 1975 com o título "O Vazio do Poder na Itália"), que inspiraria Georges Didi-Huberman a cometer todo um livro e toda uma teoria estética e histórica.

Após abjurar sua chamada "trilogia da vida" —composta por filmes baseados em "O Decameron" (1971) de Boccaccio, "Os Contos de Canterbury" (1972) de Geoffrey Chaucer, e "As Mil e Uma Noites" (1974), celebração da alegria de viver através do prazer sensual e sexual—, a que renunciou por causa da mercantilização de valores populares e autênticos encetada pela sociedade italiana de consumo, realizou o terminal "Salò, ou os 120 Dias de Sodoma" (1975), seu literal filme-testamento, retrato em troncho e escroto de uma república fascista.

Ainda não se esclareceu o assassinato de Pasolini —aliás, quem matou Marielle e Anderson em 2018? Estou com a atriz Laura Betti, que nunca engoliu a malcontada história de que Pasolini teria sido assassinado por um garoto de programa.

Sim, ele foi mesmo morto brutalmente, com requintes de crueldade em uma praia de Óstia em novembro de 1975, por um michê. O libelo de Betti, contudo, defende a ideia de um crime político, pois Pasolini, com seu último filme e seus polêmicos artigos na imprensa, incomodava um largo espectro, da esquerda à direita.

Pasolini ficou mais conhecido por sua atuação como cineasta, mas ele é, primordial e essencialmente, um artista literário, que transborda para o cinema. Não só por sua formação e iniciação na literatura e por seus interlocutores escritores, mas sobretudo por ser a literatura a medida (e a mediadora) de todas as suas coisas. No registro de hotéis, ele costumava se fichar: "escritor". Pasolini foi sobretudo um poeta.

O leitor interessado pode buscar instrução em filmes como "Pasolini, um Crime Italiano" (1995), de Marco Tullio Giordana, e "Pasolini" (2014), dirigido pelo também católico e intransigente Abel Ferrara.

Curiosamente, me desaba uma correspondência (um tanto macabra, um tanto de mau gosto) entre o corpo dilacerado de Pasolini na cena de seu assassinato e as fitas em frangalhos de seus filmes exibidos nos cineclubes brasileiros na virada dos anos 1970 até o começo dos anos 1980. No país, fatos políticos emolduravam aquela apreciação cinefílica de Pasolini: a Lei da Anistia foi sancionada em agosto de 1979, e o atentado do Riocentro explodiu em abril de 1981.

Se os filmes de Pasolini podem hoje ser vistos em canais criteriosos de streaming e ainda garimpados em bolachas digitais de DVDs, o leitor brasileiro está bem fornido de sua literatura. Em 2020, a editora 34 publicou seus "Escritos Corsários", com tradução, apresentação e notas de Maria Betânia Amoroso, autora de "A Paixão pelo Real: Pasolini e a Crítica Literária" (Edusp, 1997) e "Pier Paolo Pasolini" (Cosac Naify, 2002). Em 2015, a Cosac Naify publicou "Pier Paolo Pasolini: Poemas", organizado por Alfonso Berardinelli e Maurício Santana Dias.

Ao tentar botar um ponto final nesse necrológio extemporâneo (tentativa que procrastina talvez outros períodos e outros necrológios), me ocorre: não era propriamente que àquela altura o centenário de nascimento de Pasolini me parecia distante.

Simplesmente eu nem pensava em efeméride centenária (São Paulo era, relativamente, uma efervescente metrópole, ao menos aos olhos de um adolescente) ou nem poderia imaginar que um período tão vital seria enterrado em cova tão vil como a do covil Brasil 2022, escárnio indecente a quaisquer mínimas e dignas exéquias.

Quem foi Pasolini

Nascido em 1922, começou a escrever poemas aos 7 anos e se formou em literatura na Universidade de Bolonha em 1945.

Em 1950, se mudou para Roma e, em 1955, publicou seu primeiro romance, 'Meninos da Vida'. O governo italiano abriu um processo contra Pasolini e seu editor por obscenidade.

Em 1961 —quando já era reconhecido como intelectual da Itália pós-guerra, com sua produção de ensaios, ficção e poesia—, Pasolini lançou seu primeiro longa-metragem, 'Accattone'. Na estreia em Roma do filme, centrado na história de um cafetão e uma prostituta, um grupo de neofacistas promoveu uma manifestação contra o diretor, visto como imoral e atacado por ser homossexual. Agressões desse tipo o acompanharam ao longo da vida.

Até sua morte, em 1975, Pasolini realizou outros 11 longas de ficção. A chamada trilogia da vida —composta de 'O Decameron', 'Os Contos de Canterbury' (vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim), e 'As Mil e Uma Noites'— explora a sexualidade e as interdições religiosas e critica a sociedade de consumo, formando um conjunto de destaque na sua obra.

'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' —um dos filmes mais controversos da história, com seu retrato extremo de torturas físicas, mentais e sexuais de adolescentes por autoridades fascistas— foi finalizado semanas antes do assassinato brutal do cineasta.

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