Igor Patrick

Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

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Descrição de chapéu China mostra de cinema

Adaptação de 'O Problema dos Três Corpos' espelha aflições de artistas na China

Imbróglio com censura ilustra dificuldades de criadores do país para manter liberdade criativa

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Vencedor do Prêmio Hugo de melhor romance, o fenômeno da ficção científica chinesa "O Problema dos Três Corpos" começa em 1967, no auge da Revolução Cultural.

Na Universidade Tsinghua, Ye Zhetai é submetido a violentas sessões de humilhação pública, e guardas vermelhos exigem sua confissão por ter incluído a teoria da relatividade no currículo acadêmico, exaltando "uma autoridade reacionária, que serviria a qualquer mestre que balançasse um maço de dinheiro". Ao se recusar, o professor é espancado e morto na frente da filha, que depois se torna uma das vilãs da história.

Ilustração da adaptação do livro 'O Problema dos Três Corpos' para o serviço de streaming Tencent Video
Ilustração da adaptação do livro 'O Problema dos Três Corpos' para o serviço de streaming Tencent Video - Reprodução

Em 2006, quando o livro de Cixin Liu se tornou um sucesso de venda e crítica, essa breve cena virou um problema para os estúdios interessados em adaptar a obra. A morte de Mao Tse-tung em 1976 abriu um grande debate no Partido Comunista, que posteriormente reconheceu os excessos do período e anistiou os acusados de "contrarrevolução". Mas há um abismo entre a China daquele ano e a era de Xi Jinping, em que a censura parece mais determinada a barrar tudo que se atreva a revisitar o passado comunista.

Assim, uma adaptação cinematográfica quase finalizada foi engavetada e uma animação teve de fazer mudanças significativas em relação ao material original para ser lançada. Restava uma série, produzida pelo serviço de streaming Tencent Video, presa num limbo por meses até obter o sinal verde do regime.

Exibido há duas semanas, o produto atraiu fãs no mundo todo. A solução para contornar o imbróglio com a censura, porém, ilustra bem as dificuldades de criadores chineses para manter a liberdade criativa.

O que era uma descrição vívida da violência durante um dos períodos mais sangrentos da história contemporânea chinesa virou uma oportunidade para criticar o Ocidente. Ye, o acadêmico convicto da importância do método científico, diz numa cena à filha que "demorou a perceber a ganância da ciência ocidental". Até o momento em que escrevo (ainda há capítulos da série para serem exibidos), ele não é morto por guardas vermelhos —acaba reabilitando seus valores comunistas no leito de morte.

O tom nacionalista encontra ecos na forma como a China quer promover suas produções culturais. A série recebeu elogios efusivos da mídia estatal, e o tabloide Global Times parabenizou a trama, "um exemplo do heroísmo coletivo chinês, em detrimento do individualismo observado em sociedades ocidentais".

A produção também obedece fielmente as diretrizes editadas em 2020 pela Administração Nacional de Cinema, para a qual a prioridade número 1 da ficção científica chinesa precisa ser "implementar minuciosamente o 'Pensamento de Xi Jinping', destacar valores chineses, elevar o espírito dos cientistas e cultivar a inovação chinesa contemporânea sem deixar de herdar a cultura e a estética nacional".

Pequim quer usar sua ficção científica para ajudar a promover a imagem de uma China tecnológica. Uma produção cultural cada vez mais engessada, no entanto, desestimula criadores nacionais. O conhecido cineasta Zhang Yimou já disse que a maioria dos diretores do país trabalha em dramas históricos porque sabe que roteiros sobre a China contemporânea seriam censurados.

Assim, o que poderia ser um genuíno produto de exportação pode ser percebido como uma peça de propaganda por parte de uma audiência internacional cada vez mais desconfiada.

O caminho para os artistas chineses passa então a ser o de assentir à censura estatal, enfrentar as quase intransponíveis dificuldades da independência criativa, como financiamento e distribuição, ou tentar a sorte no Ocidente, onde também precisam se submeter à ingerência criativa, além da deturpação de conceitos caros à sociedade chinesa e de críticas unânimes de ambos os lados. Há empregos mais difíceis, mas ser artista na China certamente não deve figurar na lista de melhores profissões de 2023.

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