Igor Patrick

Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

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Descrição de chapéu China

Vídeo do dalai-lama com criança serve de motivo para discutir sua sucessão

Batalha política que se avizinha quando líder espiritual do Tibete morrer talvez não fique clara para a maioria dos leitores

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Lembro-me de uma aula a que assisti em 2019 enquanto cursava o mestrado na Universidade de Pequim.

Discutíamos pontos de fricção no engajamento da China com o mundo quando chegamos à questão do Tibete. O professor, um senhor progressista, cerrou o semblante: "Rezo sempre pela saúde do dalai-lama".

Não era um sinal de fé no budismo tibetano ou de simpatia pelo líder tão bem absorvido pela cultura pop ocidental; era o temor de turbulências na província que se tornou um caldeirão em ebulição para movimentos separatistas. No centro está o dalai-lama, que nesta semana estampou manchetes após cenas grotescas em que beija uma criança e pede que ela chupe a sua língua.

O dalai-lama mostra língua a garoto durante audiência na Índia
O dalai-lama mostra língua a garoto durante audiência na Índia - Reprodução

De tão acostumados a ver esse poliglota de semblante calmo, a batalha política que se avizinha quando ele morrer talvez não fique clara para a maioria dos leitores. O ato no qual ele se envolveu recentemente serve como algo além de um sinal de senilidade —e motivo para discutir sua sucessão.

Dalai-lama é um título, não um nome. Ele é atribuído à pessoa que no budismo tibetano seria a reencarnação do Buda da Compaixão, em uma linhagem iniciada em 1391. O rito segue o "Livro Tibetano dos Mortos", no qual a alma do dalai-lama após sua desencarnação acorda em um labirinto e por lá fica perdida até encontrar a saída e reencarnar, preservando personalidade, memórias e santidade.

Quando isso ocorre, um grupo de monges é responsável por buscar a criança reencarnada. Os relatos dizem que o atual dalai-lama, Tenzin Gyatso, foi encontrado após um fungo em formato de estrela apontar a direção da vila onde ele teria renascido. A cabeça embalsamada de seu antecessor também teria se voltado para o mesmo ponto. Ao chegar ao local, os monges ouviram relatos de um menino que operava milagres: Tenzin, que imediatamente reconheceu todos os monges e conseguiu apontar com sucesso os objetos pessoais do dalai-lama anterior em uma pilha com outros itens aleatórios.

A história esconde pontos-chave para a cultura e a governabilidade do Tibete. A busca pela reencarnação se justifica porque o dalai-lama é também a única autoridade reconhecida pelos tibetanos étnicos, que não se parecem fisicamente com os chineses han, falam outro idioma e têm seus próprios costumes. A identidade desse povo nunca agradou Pequim, que tenta solapar os riscos de separatismo.

Uma decisão crucial adotada pelo governo aconteceu em 1995. O segundo homem mais importante na hierarquia espiritual tibetana é o panchen-lama, que deve procurar e reconhecer a reencarnação do dalai.

O Partido Comunista rejeitou Gedhun Choekyi Nyima como o 11º panchen, colocado em vigilância domiciliar aos seis anos e nunca mais visto. Em seu lugar foi escolhido o filho de um membro do partido. Assim, quando morrer, o atual dalai não terá um panchen religiosamente reconhecido para buscar sua alma.

Pequim se prepara para isso há décadas. Editou uma lei em 2007 que condiciona qualquer reencarnação do dalai-lama à aprovação do governo. Também criou um plano para tornar os tibetanos étnicos uma minoria em sua própria província, oferecendo benesses a chineses han dispostos a se estabelecerem lá.

Refugiado na Índia desde 1959, Tenzin diz que não falará nada definitivo sobre sua reencarnação até completar 90 anos, em 2025. As cenas registradas nesta semana, porém, indicam que ele já não seria capaz de tomar uma decisão tão complexa. Até lá, tibetanos na China prenderão a respiração e, se ele morrer antes, o vácuo político-religioso trazido pela sua ausência arrisca jogar toda a região em uma onda de violentos protestos que podem, talvez, diminuir a proximidade da China comunista do resto do mundo.

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