Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky
Descrição de chapéu Rússia

O discurso no tanque e o fim da URSS

Há 30 anos, Boris Ieltsin resistiu a golpe contra perestroika e acelerou desintegração soviética

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Temor e incerteza dominavam o auditório principal do Parlamento russo. Lá, instalou-se o epicentro da resistência ao golpe de Estado arquitetado para eliminar a perestroika e levar a URSS de volta à ortodoxia soviética. Depois de ouvir discursos em defesa das reformas, abandonei o prédio, em busca de mais notícias sobre aquele 19 de agosto de 1991, há exatos 30 anos.

Na rua, diante da cena golpista clássica, avistei tanques de guerra. Fui, de imediato, surpreendido por uma multidão cruzando a porta do Parlamento, em marcha resoluta. Identifiquei na aglomeração, entre guarda-costas e apoiadores, o líder russo e ultrarreformista Boris Ieltsin.

Segui a turba. Ieltsin subiu num blindado enviado pelos golpistas. O tanquista, atordoado, aceitou o aperto de mão do líder russo. A máquina de guerra virou palanque, e o timoneiro da resistência discursou: “A reação não passará!”.

O então presidente da Rússia, Boris Ieltsin, participa de uma coletiva de imprensa em Bonn, na Alemanha
O então presidente da Rússia, Boris Ieltsin, participa de uma coletiva de imprensa em Bonn, na Alemanha - Viktor Korotayev - 9.jun.98/Reuters

Proféticas as palavras ielstinistas. Em apenas três dias, o golpe orquestrado por comunistas ortodoxos desmoronou, junto com o plano de afastar, do Kremlin, Mikhail Gorbatchov, pai da perestroika.

Concebida para salvar a URSS da onda separatista a rasgar o império criado por Vladimir Lênin a partir de 1917, a intentona produziu o efeito contrário. Seu fracasso acelerou tendências nacionalistas e contribuiu de forma decisiva para a desintegração soviética.

A imagem de Ieltsin sobre o tanque, numa ousadia a desnortear golpistas esperando a resignação de um homo sovieticus, galvanizou a resistência. Transformou-se em ícone do momento histórico e da irrefreável ascensão do ieltsinismo.

Lá Fora

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Ieltsin governava a Rússia, a maior das 15 repúblicas (na prática, províncias) da URSS e rivalizava com o presidente Gorbatchov, a quem criticava pela lentidão das reformas. Ambicionava chegar ao Kremlin e desafiava o governo central, apoiando a drenagem de poder para autoridades regionais.

A vitória em agosto de 1991 fez a balança política pender decisivamente para Ieltsin. Quatro meses depois, ao lado de mais dois líderes regionais, da Ucrânia e de Belarus, o mandachuva russo anunciou ignorar o poder central, ocupado por Gorbatchov, e proclamou o fim da URSS. O mapa-múndi passou a desenhar 15 países independentes onde antes havia um império vermelho.

Exaltado no Ocidente pelo papel no descarte da Guerra Fria, Gorbatchov enfrentava no plano doméstico formidável processo de corrosão política. A perestroika havia trazido liberdades inéditas, mas também a maior crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial.

A falência do modelo soviético alimentou tendências separatistas pelo gigantesco país, a se estender da fronteira com a Polônia até os mares do Alasca. E culpava-se Gorbatchov pela debacle econômica.

O patriarca das reformas navegava entre pressões dos separatistas e de um establishment conservador empenhado em manter o império intacto. Comunistas refratários às reformas viram na aventura golpista uma saída derradeira, mas erraram o cálculo ao ignorarem a capacidade de Ieltsin de mobilizar forças contra a conspiração de estilo brejnevista.

Quando cheguei ao escritório, após testemunhar a cena histórica de Ieltsin sobre o tanque, liguei a TV. Peguei a leitura dos comunicados oficiais dos conspiradores e, em seguida, um programa monótono a mostrar uma “União Soviética feliz”.

Os autores do complô achavam viver ainda nos anos 1960, quando um golpe conservador liderado por Leonid Brejnev derrubou Nikita Khruschov. Os tempos, no entanto, eram outros. E até mesmo a URSS deixou de existir.

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