Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Um personagem carismático como Gagárin poderia liderar degelo entre EUA e Rússia

Em plena Guerra Fria, turnê mundial do primeiro homem no espaço ajudou a aproximar as duas potências rivais

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Há 60 anos, Iuri Gagárin esculpiu um lugar na história ao protagonizar o primeiro voo espacial tripulado e, em seguida, partir em peregrinação global para exaltar a conquista soviética. A Guerra Fria atravessava episódios de alta tensão naquele início da década de 1960, e, apesar de temores ocidentais gerados por avanços bolcheviques, o cosmonauta com aura de super-herói e sorriso fácil reforçou a ideia de aproximação e détente entre URSS e EUA.

No mundo de Joe Biden e Vladimir Putin, assim como no de John Kennedy e Nikita Khruschov, uma iniciativa política à la Gagárin desponta como gritante necessidade para a estabilidade global. O repetitivo roteiro de crises entre o Kremlin e a Casa Branca adiciona incertezas a serem evitadas, ou, ao menos, amenizadas, em momento histórico apinhado de desafios médicos, ambientais e de segurança, em escala mundial.

Americanos e russos, hoje em dia, se desentendem sobre a posição geopolítica da Ucrânia, disputam espaços no Oriente Médio e se esmeram em mostrar musculatura militar. Washington denuncia a interferência de hackers russos em suas campanhas eleitorais, critica a prisão do oposicionista Alexei Navalni e a perseguição a jornalistas e impõe ardidas sanções econômicas.

O Kremlin acusa a Casa Branca de quebrar promessas do final da Guerra Fria ao ampliar a presença da Otan, aliança militar ocidental, até as fronteiras com a Rússia, em estratégia para isolar e conter Moscou. Reclama também de Washington ignorar sinais de boa vontade nas relações bilaterais emitidos no governo Boris Ieltsin e nos primórdios da era Putin.

Desavenças se multiplicavam também na época do voo de Gagarin, a 12 de abril de 1961. Cinco dias depois, ocorreu a fracassada invasão da baía dos Porcos, em Cuba, apoiada pelos EUA para derrubar Fidel Castro. Os soviéticos, naquele ano, iniciavam a construção do Muro de Berlim.

Em meio às tensões e em iniciativa a derrubar barreiras ideológicas, Gagárin embarcou numa turnê mundial. Exalava carisma e simpatia. Atraía multidões. O Reino Unido hesitou na hora de emitir o visto. Cedeu, no entanto, ao momento histórico, e a rainha Elizabeth e o primeiro-ministro Harold Macmillan receberam o cosmonauta.

Com a desenvoltura de estrela de rock, Gagárin desembarcou na ONU, em Nova York, visitou cerca de 30 países, entre os quais França, Índia, Islândia, Canadá e Afeganistão. No Brasil de Jânio Quadros, desfilou por Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em 1991, entrevistei, quando trabalhava em Moscou como correspondente da Folha, Galina Gagárin, filha do cosmonauta. Perguntei se a missão de seu pai simbolizava as pretensões do Kremlin de alcançar a hegemonia global. “Não penso em Gagárin como um símbolo da aspiração soviética à expansão mundial”, disse. “Recordo que a época do voo era uma época de entusiasmo, de nossa alegria.”

Guardo outra lembrança da visita ao apartamento de Galina. Na entrada do prédio, reservado sobretudo a famílias de militares soviéticos, um morador topou com o jornalista forasteiro e, lembrando de restrições bolcheviques, gritou “Estrangeiros não podem entrar aqui!”.

As reformas gorbatchovistas, no entanto, já haviam derrubado tais barreiras. Mostrei minha credencial, e o ríspido e acidental anfitrião se afastou resmungando.

A mentalidade de Guerra Fria deveria também deixar de contaminar as atuais relações entre EUA e Rússia. Um personagem carismático à la Gagárin poderia comandar um processo de degelo, embora sobreviva o desafio de onde e como encontrá-lo.

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