O principal evento do futebol mundial vai contribuir com um impressionante redesenho geopolítico do Oriente Médio, em curso desde 2020. Pela primeira vez, o Qatar receberá cerca de 30 mil visitantes em voos vindos diretamente de Israel e até uma estrutura consular será erguida em Doha para prestar auxílio aos israelenses.
A Copa transcorre em meio aos desdobramentos dos Acordos de Abraão, assinados entre Israel e seus ex-inimigos Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão. Os tratados alteraram a dinâmica médio-oriental e impulsionam cooperação em áreas como comércio, investimentos, atividades espaciais, medicina, energia renovável e agricultura.
À frente da caravana diplomática despontam Emirados Árabes e Bahrein, primeiros signatários de um processo indubitavelmente chancelado pela Arábia Saudita, a maior e mais influente entre as monarquias conservadoras do golfo Pérsico. Há a expectativa de os sauditas, num futuro não distante, costurarem um entendimento com Israel, mas, antes, testam reações no mundo muçulmano a partir das experiências emiradense e barenita.
Dois fatores levam ao abandono da estratégia de rechaço a Israel. O primeiro, de ordem geopolítica, recai sobre a ameaça representada pelo regime iraniano, empenhado desde a Revolução de 1979 em expandir influência regional, numa trajetória de embate com norte-americanos, israelenses e sauditas, rivais de Teerã no palco médio-oriental.
As ambições do Irã, ilustradas também pelo programa nuclear, levam à aproximação entre Israel e Arábia Saudita, embora contatos permaneçam sob o manto de discrição e sem laços diplomáticos formais. Coube aos Emirados e ao Bahrein o papel de pioneiros na abertura histórica.
Outro fator a cimentar o realinhamento corresponde à era pós-petróleo. Monarquias do golfo Pérsico, diante da busca global por fontes de energia renovável e não poluente, decidiram diversificar seus modelos econômicos para diluir a dependência da indústria petrolífera.
Entrou em cena a opção por desenvolver o setor de serviços, com ênfase em turismo, finanças e tecnologia. A partir dessa lógica, lideranças árabes do golfo Pérsico passaram a enxergar em Israel parceiro relevante para contribuir com a dinamização de economias antes dependentes do petróleo.
Caudaloso exportador petrolífero, o Qatar também embarcou na diversificação do modelo econômico, e o Mundial desponta como mais um exemplo da promoção turística do emirado. Numa lógica empurrada por demandas da Fifa e por mudanças geopolíticas regionais, Doha aceitou a aterrissagem dos voos diretos de um país com o qual não mantém vínculos diplomáticos.
O Qatar, apesar dos laços históricos com as monarquias vizinhas do golfo Pérsico, rejeita por enquanto os Acordos de Abraão, reflexo de sua política externa independente. Temeroso de ataques ou invasões, o país constrói uma diplomacia capaz de abrigar base militar norte-americana e de alimentar laços com Irã. E de fazer um aceno positivo a israelenses, como no Mundial, enquanto financia o Hamas, grupo a defender a destruição de Israel.
Lógica do governo qatariano: diversificar contatos diplomáticos evita cultivar inimigos e corresponde a diminuir o risco de ataques ou invasões de um país com território diminuto e grandes riquezas. Hospedar uma Copa do Mundo também proporciona visibilidade global a uma monarquia sempre preocupada com a vulnerabilidade das fronteiras de um emirado com área correspondente à metade da de Sergipe.
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