Fora com o passado. Morte às tradições. Foram estes os lemas que guiaram as vanguardas artísticas. As artes sempre inovaram, está claro, mas só a partir dos anos 1860 se afirmou nelas o princípio renovador da ruptura e do ataque declarado. A palavra vanguarda sugere batalha: vem do vocabulário militar, designa a primeira linha numa tropa de combate.
O público, desnorteado, ria-se das novidades, como riu dos impressionistas em 1874. A crítica denunciava, violenta, o assalto aos verdadeiros princípios das artes. E o escândalo fazia-se instrumento propagador das vanguardas.
Mas os novos venceram. Desbancaram os medalhões antigos e se impuseram como os verdadeiros portadores de valores universais. Hoje, rimos da historinha verdadeira ou falsa, não importa, que nos conta um Dr. Rey, médico que tratava Van Gogh, tapando o buraco de seu galinheiro com uma tela que o pintor lhe oferecera.
Lição impiedosa: o que ontem não valia nada agora vale milhões. Portanto, cuidado! O riso de hoje pode ser o lucro —estratosférico— de amanhã.
Resultado: triunfo dos novos. Com esse triunfo, institucionalizam-se. Nos anos 1930, Georgina e Lucílio de Albuquerque ensinavam o impressionismo na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Hoje, o Centro Pompidou, em Paris, e a Tate Modern, em Londres, são, entre tantos, museus consagrados a celebrar as vanguardas.
Ao mecanismo de conflitos incorporou-se outro fator: o da liberdade absoluta. Atingiu-se, com isso, a quintessência da noção de arte, tal como o Ocidente a concebe. Arte é designação ontológica. Varinha de condão que pode transformar tudo, ou qualquer coisa, em arte.
Em 1916, Duchamp inventava o ready-made, a arte pronta. Qualquer objeto se torna arte. Sobre um pedestal, disposto na galeria ou no museu, nosso olhar o transfigura e descobre nele secretos mistérios. Porque acreditamos que seja arte —e é preciso essa adesão de crente para que a metamorfose se dê.
Gosto de associar Duchamp a Bergson, que se perguntava, em 1911: “Como pedir aos olhos do corpo, ou do espírito, ver mais do que vêm?”.
E esclarecia: “Qual o objetivo da arte, senão mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não atingiam explicitamente nosso espírito e nossa consciência? [...] Há séculos, existem homens cuja função é justamente de ver e nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas”. Um urinol torna-se outra coisa quando mostrado por Duchamp.
Ruptura, escândalo, liberdade: nessa tríade repousa o princípio criador do nosso tempo. Infelizmente, tornou-se cada vez mais difícil romper e escandalizar. Como romper, se as escolas ensinam a ruptura, e os museus a celebram? Como escandalizar, se o público, blasé, permanece imperturbável diante de qualquer provocação? Como lutar pela liberdade, se ela é institucional?
Sobretudo, o escândalo tornou-se muito difícil. Ele é o consagrador, o selo de qualidade que garante aos próprios olhos do artista sua grandeza como inovador e também o conforto de saber-se incompreendido pela maioria.
Com os impressionistas, era a forma que transgredia, que provocava, que chocava. Mas, atualmente, quem se importa com a forma?
Nos nossos dias, o escândalo em arte surge apenas de campos exteriores a ela —campos morais. Um deles é quando a religião se sente atacada. O outro, quando o sexo provoca.
Deste, tivemos numerosos exemplos recentes: a exposição “Queermuseu”; a performance do grupo És Uma Maluca, na Casa França-Brasil, no Rio; ”La Bête”, no MAM-SP, que teve um protesto chefiado pelo futuro congressista Alexandre Frota.
A mais espetacular, universal, planetária, no entanto, é a cena do “golden shower” deste Carnaval, que o chefe da nação se encarregou de divulgar para o mundo inteiro, dando a ela uma celebridade invejável.
Os rapazes que realizaram a performance invocam seu estatuto de arte. Com todo o direito, como tentei explicar acima (ok, os brucutus moralistas contestarão isso, mas, sem eles, como surgiria o escândalo?). Há nela menos erotismo que demonstração, menos pornografia que declaração.
O presidente, ao disseminar e amplificar a cena, reforçou seu sentido artístico, como ensinou Bergson: fez mais pessoas verem o que não viam. Decerto, alguns descobrirão com prazer uma variante sexual que não conheciam.
E, como a história demonstra bem que as práticas escandalosas das vanguardas acabam por institucionalizarem-se, o “golden shower” acabará ensinado em escolas de arte.
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