Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Na direita ferina e na esquerda dogmática, vida confortável é despautério

A crítica é: se alguém é de esquerda, deveria levar a vida de Madre Teresa de Calcutá

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“Está com dó? Leve para casa.” Tantas vezes ouvimos essa reação, provocada pela miséria alheia. Ela indica a dureza dos sentimentos de quem a profere, e vai além, porque descortina uma visão de mundo.

Supõe que somos apenas responsáveis por nós mesmos, escapando-nos o que, aparentemente, não pertence às nossas obrigações, como trabalhar, ganhar dinheiro, cuidar da família, da casa, do cachorro e do carro. “Não tenho culpa se ‘essa gente’ não quer trabalhar e ser como eu sou.”

Quantas vezes ouvimos: “Lutei muito, me fiz por mim mesmo, me esforcei”, coisas que põem o falante no pedestal do exemplo e da virtude. Mesmo a dureza em tratar o outro adquire o álibi de lição: “Não dou moleza porque senão ‘essa gente’ não aprende.”

Significa ainda que a única responsabilidade de cada um seria o “vencer na vida” individual, excluindo qualquer dever coletivo, a não ser, talvez, o de mostrar-se como modelo. E o “leve para casa” tem uma consequência suplementar: a de que a decorrência dos movimentos generosos da alma é a ação individual. Sentimentalismo bondoso resolve-se com esmola. Ou então, adote.

Decorre daí uma crítica frequente que se ouve, dirigida à “esquerda”, ou “comunistas”, ou “socialistas”, ou “petistas”, na ignorância crassa destes nossos tempos tristes, ignorância que iguala todas essas palavras como sinônimos intercambiáveis.

A crítica é a seguinte: “É de esquerda, mas viaja para Paris”. Ou então: gosta de vinhos bons, come em restaurantes finos, compra roupas caras —e o leitor poderá, se quiser, continuar essa lista fácil. Ou seja, se alguém é de esquerda, deveria levar a vida de Madre Teresa de Calcutá, que tão belamente se consagrou aos pobres.

O curioso é que, no passado, partidos de esquerda tiveram atitudes de algum modo semelhantes.

Patrícia Galvão conta, no arrebatado “Paixão Pagu” (Agir, 2005), como o Partido Comunista obrigou a submissa militante que ela foi por um período a recusar emprego na Agência Brasileira de Notícias e no Diário da Noite: “Hesitava entre os dois quando, à noite, na reunião, ouvi a oposição absoluta daqueles a quem devia obedecer. —Nada de jornal. Nada de trabalho intelectual. Se quiser trabalhar pelo partido, terá que admitir a proletarização”, ordenaram-lhe. 

Antes, ela já se empregara numa fábrica de tecelagem em Santos (SP). Em seguida, tentou ser empregada doméstica, depois lanterninha num cinema, enfim metalúrgica: “Por intermédio de um companheiro, entrei na metalurgia. Fantasiei-me de fato de operária. Com meu avental xadrez, com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera.” 

Na China, a partir de 1966, a “Grande Revolução Cultural Proletária”, com seu projeto de unificar trabalho manual e intelectual, foi uma tragédia fatídica para um número enorme dos que atuavam no campo da cultura. Na União Soviética de Stálin, a terrível acusação de “desviacionismo burguês” foi instrumento fortíssimo de pressão e de controle.

Esses excessos do passado subsistem apenas, hoje, no patrulhamento autoritário de alguns grupos, a serem combatidos com força e sem discussão. Tanto na direita ferina quanto na esquerda dogmática, o descrédito oferecido por uma vida confortável ou, se quiser, de classe média, é um despautério.

A convicção de que todos devem ter o direito de viver com dignidade e bem-estar não exige que alguém se torne um missionário da caridade, renunciando aos bens deste mundo. Exige a consciência de que cada um é responsável por toda a coletividade, em particular pelos mais vulneráveis. 

Os índices do IBGE mostram uma fenomenal concentração de riqueza dentro da sociedade brasileira: muitíssimo para muito poucos e quase nada para a maioria imensa. Isso é verdade também para o resto da humanidade.

Desse modo, tentar se opor, com os meios que cada um possui, contra essa situação de gigantesco desequilíbrio, a mim me parece apenas uma questão de bom senso. Ninguém deveria viver com as migalhas que os ricos e super-ricos dignam-se a conceder aos mais pobres. Numa situação como essa, cada vez mais o princípio de justiça social desaparece. Como se esvai qualquer princípio, pretensamente virtuoso e esforçado, de meritocracia.

O próprio trabalho deveria ser uma escolha, e não uma obrigação. Se alguém não deseja investir sua vida no trabalho, seja porque não encontra nele satisfação pessoal, seja porque não vê interesse em consumir ou acumular, deveria ter, ao menos, o necessário para viver de maneira decente.

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