José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Embargos de declaração

Criação de comitê de jornalistas vira censura na percepção de colunista

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A explicação dada ao jovem repórter, que redigia uma pequena nota esportiva, era simples ao não explicar muito: o jornal tem interesse no assunto. A nota, portanto, estava embargada. Embargada? Sim, alguém da chefia teria que ler a nota. Pânico. Uma coisa é seu texto trafegar pelas alamedas conhecidas, outra, bem diferente, é cruzar avenidas perigosas.

Muitos textos na Folha foram, são e continuarão sendo embargados porque o jornal tem interesses, mas não só. Existem questões legais que acarretam grande responsabilidade a quem publica notícias. Talvez essa seja a grande diferença entre jornalismo profissional e aquilo que lembra a atividade nas redes sociais.

O tema é regulado pelo Manual da Redação (págs. 90, 91 e 98). "O termo 'embargado' é usado na Redação para qualificar qualquer conteúdo cuja publicação dependa de autorização da Secretaria de Redação ou da Direção." Entre os itens de "consulta obrigatória" estão: conteúdo que possa pôr em risco a segurança pública ou a de pessoa ou empresa; contenha acusação criminal; material obsceno; exponha a vida privada de personagens; possa incorrer em calúnia, injúria ou difamação; possa dar margem a processo judicial; não contemple o outro lado; faça menção à Folha, a seus profissionais e a outros veículos de comunicação.

Recentemente, por razões que os leitores devem imaginar, textos que tratam de racismo entraram no rol.

A adição foi tornada pública em reportagem publicada em 13 de maio sobre a criação do Comitê de Inclusão e Equidade, grupo de 17 jornalistas que irá atuar dentro da Redação para promoção da diversidade. A iniciativa é um dos frutos da confusão causada pelo texto de Antônio Risério, em que o antropólogo defendia a existência de racismo reverso, publicado em janeiro e recebido com forte reação pública, inclusive dos jornalistas da casa. Mais de 200 profissionais assinaram uma carta questionando a publicação de textos de teor racista pela Folha, episódio já discutido por esta coluna.

Ilustração em formas pretas de uma pessoa com efeito embaçado na cabeça e com uma grande bala apontada para o seu rosto.
Carvall

Alguns leitores e Demétrio Magnoli, em coluna recente, refutaram a nova exigência de embargo e o próprio comitê. Na leitura deles, o jornal adotou "censura prévia" e o papel do grupo não estava claro, mas faria parte de "renúncia ao pluralismo de opiniões, uma violação direta do Projeto Folha", segundo o colunista.

Um leitor indagou, via ombudsman, se o jornal daria resposta institucional ao artigo de Demétrio. Deveria, pois o texto sugere que os embargos serão do comitê, o que não é verdade. Consultada, a Secretaria de Redação diz que não haverá resposta. "O colunista externou sua visão, da qual a Direção de Redação discorda."

A coluna de Demétrio foi embargada. Sempre é. Não porque há censura prévia, mas porque todos os textos de opinião são embargados na Folha. É outra instrução do Manual. As razões para isso são as listadas cinco parágrafos atrás. O ambiente jornalístico da Folha é controlado e, até por isso, objeto de justa crítica, mas chamar isso de censura vai uma longa distância. Censura seria derrubar um texto em que o jornal é acusado de praticá-la, por exemplo.

Demétrio tem suas convicções sobre a questão racial no país, elas são conhecidas, mas é sua própria presença na lista de colunistas deste diário que colide com a ideia de guinada identitária ou qualquer coisa do gênero. Vivêssemos essa nova era, a Folha não se furtaria a descrever Genivaldo de Jesus Santos como um homem negro, mais um assassinado pela polícia à luz do dia, com requintes de crueldade. É assim que ele está sendo descrito em vários outros veículos, por grupos ativistas, pela Human Rights Watch, pela mídia internacional. O jornal, até aqui, não considera isso relevante, mas deveria.

Matar ou morrer

"Homem morre asfixiado após ser trancado em viatura por agentes da Polícia Federal em SE." "Polícia mata homem por asfixia com gás em Sergipe." Entre o primeiro título, no site, e o último, na Primeira Página do impresso, a Folha mudou o sujeito e o verbo da notícia. É uma diferença importante, mas o leitor atento pergunta se o primeiro enunciado já não deveria ter ido direto ao ponto. Talvez faltasse apuração para tanto na hora da publicação, mas, com ela realizada, não era o caso de ajustar o título inicial?

Quinta-feira (26), meio da tarde, a barbaridade contra Genivaldo está na manchete do site. Logo o aumento recorde dos planos de saúde toma o seu lugar. Às 18h, entra a pesquisa Datafolha, que assume a pole position da página e lá permanece, inclusive no impresso de sexta-feira (27). Qual era a notícia mais importante?

Após dois anos, temos um George Floyd. É macabro, mas não coincidência. Temos Floyds morrendo todos os dias e polícia matando todos os dias. Mas o problema é o comitê.

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