No domingo (28), esta coluna reclamava da pouca atenção da Folha com a pauta ambiental nas eleições, e o site do jornal publicava uma entrevista com Marina Silva, um dos nomes mais reconhecidos do setor no país e no mundo. Antes mesmo que o ombudsman pudesse começar a ponderar a crítica que acabara de publicar, o jornal voltou a justificá-la. Na Home, logo abaixo da chamada para Marina, em espaço e destaque idênticos aos concedidos à ex-ministra de Luiz Inácio Lula da Silva, a Folha trazia uma entrevista com Ricardo Salles, o ex-ministro de Jair Bolsonaro.
Assim posto, dois ex-ministros do Meio Ambiente, candidatos à Câmara, o confronto até parece fazer sentido. O problema, porém, é que Salles não foi um ministro do Meio Ambiente. Pode ter ocupado a pasta, mas foi, acima de tudo, um derrogador do sistema de proteção dos biomas do país, facilitando atividades ilegais, como o garimpo e a derrubada de floresta. Deixou o governo investigado pela Polícia Federal por facilitação de tráfico de madeira ilegal. O resultado da desastrosa gestão é o que se vê no noticiário quase todas as semanas, como nesta última, quando saiu o registro do maior número de queimadas para um agosto desde 2010.
Salles fez o país regredir décadas na política ambiental. Estudo da USP, liderado pelo embaixador Rubens Barbosa, constata a maior corrosão da imagem externa do Brasil desde os anos 1980, quando os militares achavam que a saída eram estradas na Amazônia.
No jornal impresso, a entrevista do não ministro mereceu uma página, espelhada com a de Marina. Na capa, uma chamada dupla não dava conta do principal fato relacionado a Salles no fim de semana, seu bate-boca com André Janones durante o debate presidencial.
O problema não é o jornal dar espaço ao candidato. A entrevista é incisiva e deixa claro que sua plataforma na Câmara é o afrouxamento da legislação, que enverniza como liberalismo. A questão é deixar Salles com a mesma estatura de Marina, qualificando-o para um debate do qual não participa por princípio. A Folha cometeu a clássica falsa equivalência. Comparou o incomparável. Deu legitimidade a Salles como agente da pauta ambiental, enquanto ele não passa de uma voz reacionária e oportunista.
O jornal não precisava fazer isso com Marina nem com si próprio. Há maneiras mais inteligentes de dar espaço ao contraditório sem que seja preciso deixar a boiada passar.
Google rules
Não faltaram incongruências na Folha nesses dias. Uma extemporânea defesa das privatizações, vista por alguns leitores como partidária, o silêncio sobre cotas raciais, o pouco destaque dado a um dos melhores títulos das eleições até aqui, do UOL: "Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo".
No lugar de reportagem, uma das coisas mais lidas na Folha foi o anúncio de que haveria uma nova pesquisa Datafolha na quinta-feira (1º). O curto texto liderou a lista de audiência do site por quase dois dias e, na sexta-feira, concorria com o próprio levantamento, publicado na noite anterior. Em O Globo, algo parecido se deu, logo depois que Lauro Jardim publicou nota sobre a próxima pesquisa Ipec, que mostrará seus resultados na segunda-feira (5). Seria bom acreditar na grande expectativa gerada pelos números, mas a explicação está nos mecanismos de busca, que privilegiam o que dá audiência, não necessariamente o que é notícia. O jornalismo está a reboque.
Autismo
Luiz Felipe Pondé é um dos colunistas contratados pela Folha para dar trabalho ao ombudsman (lembrando que os tempos estão literais, isso é uma piada). Sua ácida crítica social muitas vezes não é tolerada. Foi o caso nesta última semana, quando versou sobre o diagnóstico do autismo como "tendência de estilo hype". Machista, misógino, capacitista, transfóbico, sobraram adjetivos para o filósofo.
Vários leitores, autistas e ou com filhos autistas, enviaram relatos pessoais ao ombudsman e ao jornal. Um deles, inclusive, foi publicado em Tendências / Debates. Em resposta a essas mensagens, Pondé escreveu que o foco do artigo era "não deixar que o sofrimento se transforme em mero assunto banal". "Quem entendeu meu texto percebeu isso, quem não entendeu pensou que eu estivesse dizendo o contrário."
Seria prático considerar que o artigo do colunista resta compensado pelo desagravo de Vanessa Ziotti. O jornal, no entanto, dentro de sua lógica de ampla liberdade de expressão, abriu espaço para um debate que agora impõe amplo esclarecimento. Da banalização do sofrimento à superação da tese da "mãe geladeira", do ponto do colunista ao de seus críticos, o assunto precisa evoluir do choque de opiniões para uma equilibrada e cuidadosa reportagem.
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