José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

José Henrique Mariante
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Força de elite

País naturaliza discurso de brutalidade que a mídia não deveria reproduzir

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guarujá já foi a "pérola do Atlântico", lugar de chiques e descolados. Litoral norte era mato no fim dos anos 1960, início dos 70. Bacana era ir para "o" Guarujá, precedido pelo artigo, vetado com o tempo por alguma razão. Casas espetaculares construídas à beira-mar ou em escarpas apareciam em revistas alemãs, as sinalizações de mar perigoso já eram escritas em inglês. Uma década mais tarde, uma avalanche de gente, veranistas e nem tanto, saturou o balneário de prédios e barracos. Guarujá foi a experiência inicial e mais urbana da desigualdade a céu aberto do litoral paulista. O diagnóstico sobre a região aflorou à época dos deslizamentos em São Sebastião.

Ninguém engoliu que a excepcional quantidade de chuva ou a crise climática poderiam ser os únicos motores da tragédia. Ainda bem. O mundo gira, e ninguém se lembra agora de mazelas sociais. Sobram dedos apontando para culpados: gangues, tráfico, PCC. Rota neles então, como diria Paulo Maluf, sem vergonha de transformar a violência da polícia em ativo eleitoral.

A Folha elevou a mais nova matança paulista (discute-se ainda se foi uma chacina) à manchete do site e do impresso no ciclo noticioso do fim de semana passado, assim que a quantidade de corpos ganhou escala. Concorrentes não foram tão longe ou demoraram alguns dias para alcançar o tom. O soldado Patrick Bastos Reis morreu na noite de quinta-feira (27), e críticos chamam a atenção para o fato de o jornal só ter acordado para o assunto a partir da retaliação do estado. O ataque que vitimou o agente de segurança por certo merecia ter tido mais destaque, até para instigar explicações sobre o ocorrido. Um integrante da Rota ser recebido a tiros é ponto fora da curva, reputar isso apenas à audácia do criminoso é cair na simplificação do discurso oficial. E, por mais que policiais e políticos reclamem, a mídia cai nele com grande frequência.

Este jornal, por exemplo, gosta de explicar o que significa a sigla Rota e que seus integrantes compõem uma "força de elite" da Polícia Militar. O Jornal Nacional fala de "força tática". Em termos jornalísticos, a designação atenua o fato de ser também a tropa mais letal da corporação. Parece detalhe, mas é esse tipo de coisa que explica o secretário de Segurança Pública, com naturalidade, dizer que o governo reagiu "com essa violência na mesma proporção com que eles atacam a polícia". Como se ao estado fosse facultada a lei de talião.

Ou o governador paulista carioca apelar para "efeito colateral" e o governador fluminense santista mencionar "operação bem-sucedida". Mortes, no entanto, deveriam chocar. Qualquer uma. Não é razoável ignorar a falta de humanidade na imagem de um caveirão vazando sangue, registrada pelo fotógrafo Eduardo Anizelli na Primeira Página da Folha.

A sombra de um policial armado de fuzil, projeta-se sobre uma calçada cujo padrão é a silhueta do Estado de São Paulo. À direita da imagem, uma mancha de sangue.
Folhapress

Se os governadores não querem se atrapalhar com a bancada da bala ou com seus eleitores bolsonaristas, deveriam pelo menos ser instados a discutir em melhor nível: qual é o planejamento de médio e longo prazo nas regiões afetadas, como se dará a integração com a esfera federal de segurança, como desfazer o pernicioso clima de medo nas comunidades.

"É preciso cobrar mais informações do ponto de vista técnico", afirma à coluna Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. "O Estado de São Paulo reduziu os índices de violência, inclusive policial, nos últimos quatro anos. Teve uma política, um plano de aprimoramento. A questão a ser explorada é se isso mudou agora."

A discussão nos jornais também deveria ser mais perspicaz. Em uma tentativa de detalhar o teatro de operações da PM, na Baixada Santista, o jornal escreveu em título que a "proximidade de Guarujá com o porto de Santos atraiu o PCC". Os pesquisadores ouvidos disseram mais do que isso: o tráfico internacional pelo porto é um "crime de habilidade, de altos negócios", em que o banditismo comum atrapalha. Nada disso bate com o que se passa em Guarujá ou se alega nas operações. A contradição é que deveria estar no enunciado da reportagem e nos questionamentos às autoridades.

Há outros desdobramentos a serem explorados. Uma pistola 9 mm foi usada contra o policial Reis. Faltou contextualizar que esse foi o calibre mais vendido na era Bolsonaro, parte do arsenal "bomba-relógio", na acepção de Carolina Ricardo, que repousa nas mãos de CACs e congêneres ou escorregou para o crime. A perícia vai dizer de onde pode ter saído a arma? Por sinal, era CAC o ex-marido que matou a ex-mulher também com uma 9 mm à luz do dia na Vila Leopoldina na última semana?

Uma passada pela seção de comentários do jornal mostra como é relativamente fácil para o governo paulista se justificar sobre tamanha onda de violência. Cabe à imprensa, como frisa a especialista, ser técnica. Evidenciar a barbárie por detrás do discurso soa óbvio, mas não é suficiente.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.