José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Jornalismo entre polos

Polarização contamina quase tudo, e a imprensa não vai conseguir evitar

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Joe Biden está muito velho para ser presidente dos EUA, segundo 61% de seus eleitores em 2020. A constatação, noticiada no começo deste mês, veio de uma pesquisa patrocinada pelo jornal The New York Times.

Vozes do Partido Democrata e muitos analistas se revoltaram. Fazer esse tipo de pergunta, a esta altura do campeonato, pode soar como legítimo interesse jornalístico, mas é uma espécie de profecia auto-realizável: vamos perguntar se Biden está velho, pois ele está velho, e o resultado será que ele está velho. Isso interessa apenas ao adversário, Donald Trump, portanto o Times está fazendo o serviço sujo para o ex-presidente candidato.

A percepção piora quando o óbvio é lembrado, Trump é um fascista de rede social, mentiroso, racista e negacionista da crise climática. Uma imprensa que se diz democrática deveria tentar com todas as forças impedir que ele volte ao poder. Só que jornalistas, pelo menos os de verdade, não fazem isso. A objetividade jornalística, a que contraindica o risco de assumir lados, se impõe. Ainda que um dos lados seja o horror que for. Compreender isso já é um problema para muita gente. Admitida a existência do dilema, percebe-se então o grande deserto da não solução. O jornalismo atual está longe de alcançar uma saída.

A gestão Biden tem grandes desafios, mas também virtudes. O maior deles é seu pacote trilionário contra a inflação, na verdade uma ampla política ambiental, das maiores em curso no planeta. Ninguém liga para isso, como de hábito, e a aprovação do presidente segue em baixa. O debate de aliados, porém, é se a imprensa americana não aprendeu nada com a eleição de 2016, quando o azarão Trump foi subestimado a ponto de angariar amplo espaço para suas sandices.

Neste ano, muitos veículos economizam na transmissão de seus discursos. Ou os submetem a escrutínios severos, como o publicado na última semana pelo jornal The Washington Post. A descrição na abertura do texto não deixa dúvida do que se trata: "Uma visão distópica de escuridão e desespero. Bacanal de mentiras e inverdades".

Um homem equilibra-se num muro feito de folhas de jornais. De um lado o chão é vermelho e do outro, azul.
Carvall/Folhapress

A questão é se os pruridos farão alguma diferença, se o jornalismo profissional ainda é capaz de influir nos humores do país ou se isso já não é apenas uma memória saudosista.

O fenômeno é global.

No Brasil, a última rodada de pesquisas de avaliação trouxe más notícias para Luiz Inácio Lula da Silva. Curvas de aprovação e reprovação convergem a despeito do cenário econômico do país parecer razoável. Jornais mostram os números, teses prosperam ao sabor da verborragia do presidente, mas poucos são os analistas que vasculham os dados.

Vinicius Torres Freire, uma dessas exceções, atenta para o fato de que o tombo de Lula não é de agora, começou na segunda metade do ano passado. Preços de alimentos estão em patamar alto, mas há algo de subterrâneo a fazer sombra nos números. Na pesquisa AtlasIntel as maiores preocupações do momento, segundo os consultados, são criminalidade, drogas e corrupção. Ressoa como o discurso de opositores, daí a assunção de que coisas como a descriminalização do porte de maconha, feita no STF, por exemplo, estão caindo na conta do governo.

Seria bom a mídia investigar, é um problema a política pública se tornar refém da discussão tosca das redes sociais. Mas talvez a imprensa tenha outras preocupações, muitas geradas pelo próprio Lula, outras nem tanto.

O obscurantismo prevalece, porém, quando suas manifestações recebem tratamento jornalístico, as legitimando. Não concorrem para estimular o debate, mas para anulá-lo. Não nos enganemos, estamos como os americanos, distantes de uma solução que afaste de vez os riscos à democracia.

Qual é a pergunta?

A vacinação contra a dengue não decola em São Paulo. Apenas 25% dos adolescentes, público-alvo da campanha, receberam o imunizante. Título da Folha prefere os números às explicações. Na reportagem, especialista fala que há efeito dos movimentos antivacina e que a dispensa da carteira de imunização nas escolas, em muitas prefeituras, prejudica a campanha. Parece claro qual deveria ser o enunciado.

Na cidade de São Paulo, onde se intui que a compreensão sobre a vacina seja maior do que no interior do estado, a maioria da população quer ser imunizada, mostra o Datafolha.

Com o filtro da polarização, outro título da Folha indica que a rejeição à vacina é pequena entre bolsonaristas: 76% querem ser vacinados, o que parece muito só até o texto informar que a fatia vai a 95% entre os petistas. Do ponto de vista de saúde pública, qual deveria ser a notícia, que a rejeição à vacina é pequena entre os bolsonaristas ou que ela é a maior da análise? O ilusionismo está em distrair o olhar, como a de defender que planejar um golpe de Estado não é o mesmo que cometer um.

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