José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Folha na tomada

Jornal lança campanha por energia limpa, campo minado para o ambiente

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O 104° ano da Folha começou com um fato raro, o lançamento da terceira campanha institucional da empresa em um intervalo de décadas.

Há 40 anos, este jornal encampava as Diretas Já, momento fundamental da redemocratização (e também da transformação da Folha em grande veículo de imprensa). É notável, inclusive, que o estertor da ditadura, no atual estado de coisas, ainda não tenha merecido maior lembrança.

Há 5 anos, foi a vez da campanha em defesa da democracia, assombrada então pelas bravatas golpistas do bolsonarismo, amostra de como sinais antecedentes são importantes e devem ser levados em conta.

Agora é o planeta. Quer dizer, de parte dele ou de algo que o afeta, a transição energética.

Desde o dia 18 de fevereiro a Folha ostenta um logo reformado alusivo ao tema e um novo slogan temporário, "um jornal em defesa da energia limpa", no site e na versão impressa. Uma "transformação necessária, gigantesca", que torna "imprescindíveis a ação corajosa de governos e o apoio decidido da sociedade", escreveu o jornal em editorial de Primeira Página, peça de resistência da cobertura iniciada de modo ostensivo na mesma data.

Uma folha verde está ligada a uma tomada. No fio entre as duas, um nó. O fundo é branco.
Carvall/Folhapress

Uma bem-vinda priorização do tema mais importante da atualidade, o aquecimento global. Ainda que o apocalipse de Baby e o dedo nervoso de Vladimir Putin chamem a atenção, o que apavora ou deveria estar apavorando são os termômetros subindo, tragédias "naturais", aspas obrigatórias, de toda sorte e coisas esquisitas, como queimadas em Roraima e, ao mesmo tempo, enchentes no Acre. Uma desordem cada vez mais frequente, que se traduz também em pestilências, como a dengue. E a epidemia é só o desafio da vez. Outros virão, pois a crise climática é transversal, e assim deveria ser sua cobertura jornalística.

Apesar de abrangente, a opção da Folha pela transição energética guarda algumas questões que podem se tornar indigestas se mal combinadas. Por exemplo, pelo começo, o que é exatamente energia limpa. Seria a completa descarbonização do processo produtivo? Ótimo. Ou o termo estará sujeito ao conceito elástico de transição? É mais do que semântica, mostrou a COP28, em que os negociadores sauditas emplacaram "transição" no lugar de "eliminação" gradual da exploração mundial de petróleo em troca de uma obviedade, a admissão de que esse fim é um imperativo.

No Brasil, a coisa não é menos cinzenta. O ministro de Minas e Energia acha que explorar petróleo na Foz do Amazonas faz parte do processo. E o Congresso, volta e meia, flerta com ideias e prazos de validade vencidos ou perto de vencer, como carvão e gasodutos.

Vê-se que é preciso elevar o debate, o que o jornal mostra estar disposto após o advento de novos colunistas e a realização de um seminário com especialistas. Todos, sem exceção, vozes do mercado e do governo, é forçoso notar. Ninguém da academia, ninguém da área ambiental, diversidade que certamente enriqueceria a conversa e traria, naturalmente, limites mais rígidos para o conceito de transição.

Não que a Folha precise se obrigar ao ativismo por estar em campanha (e a despeito de ter tido seu maior sucesso na campanha em que foi mais ativista), mas a escolha pelo foco fechado em energia a deixa suscetível. Se por aqui pouco incomoda o fato de o novo colunista comandar uma empresa que é metade da Shell, o dragão que processa ambientalistas na Europa, uma iniciativa incoerente com o respeitado histórico do jornal na cobertura de ambiente e Amazônia pode ser danosa.

Os primeiros sinais são auspiciosos. Duas semanas de leituras interessantes: dos dilemas tributários das montadoras à obsolescência das hidrelétricas, da absoluta falta de plano para redução de combustíveis fósseis à grande falácia da reciclagem do plástico.

Um pouco de radicalismo, como aquele de há 40 anos, é claro, não faria mal a ninguém, muito menos ao planeta.

Também morre quem atira

O conflito em Gaza produz novo capítulo dramático. Para quem está contando títulos a favor ou contra este ou aquele lado, e tem muita gente fazendo isso, é importante observar que a Folha foi um dos poucos jornais do mundo a manchetar Israel como sujeito da ação de quinta-feira (29). The Wall Street Journal e Financial Times seguiram trilha parecida. The New York Times pôs Israel apenas no subtítulo de sua capa, ainda que a abertura do texto implicasse diretamente os militares do país.

Outro item chocante do episódio são as imagens do tumulto feitas por drone israelense. Estratégia de divulgação, tema já debatido pela coluna, com resultado ainda mais incerto desta vez. Captada à distância, sem luz, sem cor, a cena parece desumanizar o ocorrido, bem observa uma colega. Não culpa nem absolve, apenas escancara o horror, como se ele já não fosse evidente.

Erramos: o texto foi alterado

Uma primeira versão da coluna sucumbiu à memória e à tentação do número redondo. A campanha das Diretas Já aconteceu há 40 anos, não há 50. O texto foi corrigido. Nossa democracia é mais jovem do que parece.

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