José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

José Henrique Mariante
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Fórmulas prontas do jornalismo

Militares se irritam, montadoras investem e tudo continua como antes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Conrado Hübner Mendes, com certa frequência, cutuca jornalistas. A categoria tem um papel coadjuvante em seus artigos, mas apanha de quando em quando como os luminares do Judiciário, os protagonistas em geral. Proximidade pouco republicana com o poder, condescendência, falta de isenção e espírito crítico, vaidade. As acusações são pesadas, mas nada que jornalistas não estejamos acostumados. A acidez dos comentários, por outro lado, reflete, na parte cheia do copo, a constatação da necessidade de um jornalismo profissional independente. Sem ele, o atual estado de coisas prevalece ou tem chance menor de ser alterado. Poderia, deveria ser diferente.

Na última semana, Conrado mirou uma cobertura específica, a dos militares do país, exemplo de "servilismo jornalístico", de acordo com a análise calcada em uma curiosa observação empírica: a enorme quantidade de títulos da imprensa nacional que dão conta de algum tipo de irritação das Forças e dos generais. A lembrar do tamanho da vara, em uma reverência anacrônica, não o da onça.

Os enunciados listados na coluna aparecem em uma busca simples na internet, "militares + se irritam." Há de tudo e de todos, da semana e de há muitos anos. Conrado tece suas teorias, a discussão aqui não entrará no mérito, mas toma a liberdade de acrescentar mais uma: e se o aparente servilismo for efeito colateral de algo mais banal, uma inconfessável indigência jornalística, fórmula pronta, como tantas que habitam as Redações desde tempos imemoriais.

A coisa fica ainda pior quando se percebe dois movimentos de repetição sobrepostos. O que se especula, por servilismo ou indigência, e o que é imposto pelo mecanismo de busca do Google: da esquerda à direita, da Folha à Gazeta do Povo, do Brasil 247 a O Antagonista, os títulos sobre um mesmo assunto se repetem, como se todos estivessem escrevendo a mesma coisa. Quando não estão efetivamente escrevendo a mesma coisa.

Também na quinta-feira (8) da coluna, Folha, O Globo e O Estado de S.Paulo deram manchetes de seus impressos para os bilhões de investimentos anunciados por montadoras. Algumas cifras eram divergentes, o destaque para eletrificação ou carros híbridos variava aqui e ali, mas a notícia era a mesma. Na internet, os títulos eram os mesmos, não apenas no dia ou na semana. Assim como militares sempre se irritam, montadoras sempre investem. A busca simples "montadoras + investem" revela outra fórmula pronta das Redações, com enunciados idênticos, ainda que separados por anos.

A primeira página de um jornal exibe a pegada de um coturno militar. O fundo é branco.
Carvall/Folhapress

Não que não fosse notícia os pacotes de duas das maiores marcas do país no espaço de dias. Mas é o negócio de sempre, que a imprensa repete sem constrangimento ou ponderação. E sempre há uma a fazer.

Antes das manchetes, uma análise na Folha mostrava que o investimento das empresas não era exatamente questão de opção. Quem quiser permanecer no mercado, nos próximos anos, terá que cumprir novas e custosas regras de emissão de poluentes. Outro artigo mostrava que o montante estava longe de ser recorde. Sem falar dos subsídios, que tornam complexa a apreciação sobre o real retorno dos investimentos.

É importante notar que a fórmula pronta, apesar do caráter pretensamente prosaico, pende sempre para o lado que interessa ao agente da informação. Conrado faz aguda observação sobre a posição da imprensa em relação aos militares. Impressiona como a indústria automobilística navega com tranquilidade pela mídia e pelos governos.

O jornalismo precisa de alguma sofisticação. Fórmulas salvam o dia, não muito mais.

Come-cotas

Campeão de reclamações da semana, o editorial "Cotas sociais, não raciais" é um daqueles momentos em que a Folha gera mais dúvida do que certeza em parte de seus leitores.

O jornal que faz campanha para angariar assinantes mulheres com a oferta de um livro de bell hooks, celebra a liberação do aborto na Constituição francesa, inicia a publicação de uma oportuna série sobre direitos reprodutivos, inovou com um programa de trainees para profissionais negros e adota cotas para seu próximo treinamento, voltado à economia, não conversa com o jornal que se opõe à ação afirmativa para pretos, pardos e indígenas nas universidades.

Na esteira da polêmica sobre os estudantes que tiveram matrícula recusada na USP, a Folha expôs seus argumentos contra as cotas raciais, assim como fizeram alguns colunistas. Apesar dos comentários e da gritaria nas redes sociais, o jornal não se preocupou em dar espaço ao contraditório e às críticas. Apenas no sábado (9) o Painel do Leitor contemplou o assunto, talvez pelo fato de o ombudsman ter notado a lacuna em crítica interna.

Essa Folha que não se abre ao debate, como outrora, também é estranha aos leitores.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto dava link para artigo de Wilson Gomes em trecho sobre colunistas do jornal que se posicionaram contra as cotas raciais. O professor não fez isso, o link foi um erro de edição.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.