Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Laura Mattos

Doria, a questão de gênero na escola e a guerra em Israel

Mesmo que isenção nos livros escolares seja utópica, é possível que eles sejam mais abertos a diferentes pontos de vista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não basta bradar “É censura!” sem encarar um debate a respeito da apreensão ordenada por João Doria, no mês passado, de apostilas escolares com conteúdo sobre questões de gênero.

Vamos recapitular: O que justificou o recolhimento foram três páginas do material de ciência para o 8º ano do fundamental com texto que defende que o gênero não tem relação direta com o sexo biológico: ele é resultado de uma construção.

“Podemos dizer que ninguém ‘nasce homem ou mulher’, mas que nos tornamos o que somos ao longo da vida, em razão da constante interação com o meio social”, afirma um trecho.

O governador de São Paulo adotou um discurso virulento contra o conteúdo, dizendo se tratar de “apologia da ideologia de gênero”, de “tema que não deve ser abordado no ensino fundamental”, um “erro inaceitável” que sofreria “medidas punitivas”.

 
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB)
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB) - 28.jun.2019 - Eduardo Knapp/Folhapress

O tom baixou quando a Justiça determinou o retorno das apostilas. Doria negou censura e as devolveu após incluir um encarte com nota afirmando que o material sobre gênero havia suprimido “a informação de que se tratava apenas de uma abordagem sociológica”, que há “explicações concorrentes” e que é “fundamental se buscar todas as visões científicas e recorrer a fontes de pesquisa reconhecidas”.

Findo o resumo, vem a primeira pergunta para provocar a discussão: mesmo considerando a perspectiva de Doria, ele não poderia ter recorrido logo no início à distribuição desse encarte, em vez de brindar professores e alunos com cenas de livros sendo jogados dentro de sacos pretos, em um show de autoritarismo?

Outra questão: quem é o governador para afirmar que esse tema não deve ser abordado? Por outro lado, é necessário indagar: as apostilas escolares não deveriam ter apontado que a questão de gênero está bem longe de ser consensual e dado espaço às mais contrárias interpretações, pregando a tolerância e o respeito à diversidade não somente no campo da sexualidade como também no das ideias?

Nessa reflexão nos ajuda o recém-lançado livro “Ideologia e Propaganda na Educação” (Unifesp/Boitempo), sobre a forma preconceituosa com a qual os livros didáticos de Israel retratam os palestinos.

Uma tragédia pessoal mobilizou a autora, Nurit Peled-Elhanan, a entender por que o ódio se desenvolve tão cedo, mesmo entre crianças: sua filha foi morta aos 13 anos em um ataque palestino.

Professora de linguagem da educação e semiótica na Universidade Judaica de Jerusalém, ela constatou que o material escolar é profundamente racista e difusor de uma visão contrária aos palestinos, retratados como terroristas, avessos ao progresso, causadores de problemas e frequentemente representados em desenhos com o estereótipo Ali Babá.

À coluna, a autora disse entender que a ideologia seja inevitável em materiais didáticos, inclusive pela dificuldade de se definir “verdades” científicas ou históricas.

Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga da USP, escolheu o título “História não é bula de remédio” para a introdução de seu livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (Companhia das Letras).

Ela relata que, após a independência de 1822 no Brasil, um dos primeiros atos do império foi estabelecer uma “história oficial” do país e, para isso, selecionou candidatos em um concurso público com uma questão que ia direto ao ponto: “Como se deve escrever a história do Brasil”. Dessa forma, conclui Lilia, não é de se estranhar que a história frequentemente vire objeto de disputas políticas.

Ainda assim, e mesmo que a isenção ideológica nos livros escolares seja utópica, é possível que eles sejam mais abertos a diferentes pontos de vista, na opinião da pesquisadora israelense.

Especificamente sobre as apostilas de Doria, ela afirma que a solução para essa polêmica “não tem a ver com material didático, mas com curar as pessoas de todos os tipos de racismo”. É censura, sim, podemos bradar. E muito mais.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.