Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Lúcia Guimarães

Michael Bloomberg vendeu proteção, e o Partido Democrata comprou

O 'tudo, menos Hillary' elegeu Trump; o 'tudo, menos Trump' pode eleger Bloomberg, bilionário liberal e republicano de coração

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na noite desta quarta-feira (19), dois americanos de 78 anos vão fazer história. Não porque são os mais idosos a concorrer à Presidência.

Bernie Sanders e Michael Bloomberg participam do debate democrata em Nevada como os primeiros pré-candidatos judeus, favoritos e com chance de se eleger presidente dos Estados Unidos.

E num momento em que incidentes de antissemitismo aumentaram no país, a ponto de, neste mês, o FBI ter declarado a ameaça de extremistas defensores de supremacia branca, filhotes da Ku Klux Klan, tão grave quanto a ameaça de grupos como o Estado Islâmico e seus simpatizantes.

A súbita disparada de Michael Bloomberg nas pesquisas nacionais é resultado direto de sua fortuna. Ele já gastou US$ 400 milhões em menos de três meses de campanha e se mostra disposto a comprar sua vaga na Casa Branca por mais de US$ 1 bilhão.

Michael Bloomberg durante evento de campanha em Houston - Go Nakamura - 13.fev.2020/Reuters

Bloomberg governou Nova York com competência cirúrgica por três mandatos, entre 2002 e 2013, usando a fortuna construída na empresa de informação financeira que leva seu nome.

O preço de cada voto foi aumentando. No primeiro mandato, ele gastou US$ 74 milhões, US$ 99 por voto.

No segundo, US$ 85 milhões, US$ 112 por voto. Mas a lei municipal vetava o terceiro mandado.

O então prefeito dobrou a Câmara de vereadores numa gastança de US$ 102 milhões e cada voto na segunda eleição lhe custou US$ 174.

Com um detalhe: o terceiro mandato seria uma exceção customizada para o São Sebastião Bloomberg, que precisava salvar Nova York, em pleno crash de 2008, de um não plutocrata menos eficaz do que ele em gestão. 

Em 2013, ano final do mandato, Bloomberg flertou com o poder global. Começou a construir a luxuosa filial de sua empresa e fundação em Londres, projetada pelo arquiteto Norman Foster, e despejou generosas doações em instituições como galerias e teatros, num país em que o governo tradicionalmente patrocina cultura. 

Amigos conservadores sugeriram que ele devia se candidatar a prefeito de Londres.

Bloomberg contratou uma empresa de relações públicas para ajudá-lo a ser aceito na rarefeita elite britânica. Comprou uma casa espetacular, construída no século 18, numa rua privada londrina.

Aproximou-se do então prefeito e futuro primeiro-ministro pró-brexit Boris Johnson, depois de ter cooperado indicando especialistas, anos antes, para a primeira campanha do conservador David Cameron para premiê.

Michael Bloomberg democrata? Ele é leal ao partido de Michael Bloomberg.

Foi republicano, independente e democrata ao longo dos anos, dependendo da expediência eleitoral. É liberal em costumes —pró aborto, progressista em meio ambiente e controle de armas de fogo— e conservador em economia. Mas o resumo anterior é uma redução. 

Quando prefeito, Bloomberg herdou uma cidade onde o crime já estava em declínio, mas ainda vivia sob o trauma do 11 de Setembro.

George W. Bush aproveitou o atentado às Torres Gêmeas para começar a guerra no Iraque, talvez o evento moderno mais destrutivo para o poder global americano. No mesmo período, Bloomberg enfrentou, na prefeitura, pouca resistência para suas táticas policiais.

A mais dramática delas, o "stop and frisk" (parar e revistar), traumatizou uma geração de jovens nova-iorquinos. Entre 2002 e 2011, quase 700 mil pessoas foram paradas pela polícia, a esmagadora maioria negros e latinos, dos quais 90% eram inocentes.

Conversar com a mãe ou o pai de qualquer adolescente negro ou latino em um bairro não afluente de Nova York dá uma medida do estresse coletivo naqueles anos.

Até pouco antes de se lançar pré-candidato, em 2019, Bloomberg defendeu a prática do "stop and frisk", suspensa e considerada inconstitucional graças à decisão judicial contra a qual ele apelou, ainda prefeito.

Uma outra prática menos conhecida durante os mandatos de Bloomberg foi a cooperação da polícia de Nova York com a CIA num programa de espionagem indiscriminada de muçulmanos.

Mesquitas, livrarias e restaurantes foram infiltrados. Vendedores de rua e até estudantes tiveram suas conversas gravadas. 

Em 2015, um tribunal federal comparou a maciça espionagem étnica de muçulmanos à perseguição a judeus americanos no clima de “alerta vermelho” durante a Guerra Fria. 

Quando participar do debate em Nevada, estado em que seu nome ainda não aparece na cédula, Michael Bloomberg há de ser questionado por outro albatroz nas costas de sua carreira, a misoginia.

Inúmeras ações legais de mulheres contra a empresa que ele fundou foram concluídas por acordos antes de chegar aos tribunais.

Na semana passada, o Washington Post entrevistou, pela primeira vez, uma testemunha que confirmou um diálogo que Bloomberg nega, mas que resultou num acordo extrajudicial, atualmente protegido por uma cláusula de confidencialidade.

Em 1995, uma vendedora da empresa teria notificado Bloomberg de sua gravidez para ser contemplada com a reação, “kill it” (mate o feto).

Uma pergunta inevitável no debate de Nevada será: por que Bloomberg não libera as mulheres que processaram sua empresa da cláusula de confidencialidade? Esta é uma reivindicação do movimento #MeToo contra o assédio e a violência sexuais.

Com tanto telhado de vidro, é preciso entender o abraço ao bilionário ex-prefeito de Nova York no Partido Democrata. Especialmente o apoio de negros eleitos.

Bloomberg investiu parte de sua fortuna, não apenas em causas, como controle de armas e meio ambiente, mas em políticos que concordam com sua agenda, não importa o partido. 

Em 2016, ele gastou US$ 12 milhões para reeleger o intensamente conservador republicano Pat Toomey para o Senado, apenas porque ele topou apoiar a verificação de antecedentes para a compra de armas de fogo.

Em 2018, Bloomberg gastou US$ 100 milhões para ajudar o Partido Democrata a recuperar a maioria na Câmara, perdida desde 2010. Dos 21 candidatos que receberam doações de Bloomberg, 15 eram mulheres.

Em setembro passado, a organização feminista Emily’s List, que trabalha pela eleição de mulheres, aceitou Bloomberg como palestrante, apesar de um debate interno pouco depois de ele expressar ceticismo sobre a veracidade de depoimentos de mulheres no movimento #MeToo, especialmente as que atingiram um famoso amigo seu, o âncora Charlie Rose.

Melindrar Michael Bloomberg parece ser uma grande preocupação entre democratas beneficiados por doações de sua fortuna avaliada em US$ 60 bilhões. 

Se Bernie Sanders, a locomotiva financiada por pequenas doações, e Michael Bloomberg forem os únicos pré-candidatos que sobrarem a partir das primárias eleitorais de março, Bloomberg usará sua fortuna para destruir Sanders com anúncios de TV?

Qual o efeito de um candidato Bloomberg sobre milhões de eleitores que doaram pequenas quantias para os outros candidatos, na esperança de combater o poder financeiro na política e a desigualdade no país?

E se, por outro lado, Michael Bloomberg, uma vez no poder, se revelasse um “traidor da classe”, o epíteto conferido ao radicalmente progressista e abastado Franklin Delano Roosevelt?

No momento, Bloomberg é beneficiado por uma imprensa que claramente aprova sua gestão em Nova York e não pagou o preço enfrentado por minorias.

Do New York Times aos programas da TV a cabo, a cobertura sobre Bloomberg é ridiculamente desproporcional à cobertura de candidatos que já foram testados nas urnas, como Pete Buttigieg e Elizabeth Warren.

Foi uma cobertura sensacionalista que ajudou a levar Donald Trump à Casa Branca em 2016.


PESQUISA MAIS RECENTE

Bernie Sanders 25% 
Michael Bloomberg 17%
Joe Biden 13%
Pete Buttigieg 11%
Elizabeth Warren 9%
Amy Klobuchar 5%

Reuters/Ipsos, divulgada na terça (18)


Mas se Bloomberg comprar a Presidência é o caso de perguntar o preço final da transação, a médio prazo, para o Partido Democrata.

Donald Trump ocupou o Partido Republicano e enxotou os moderados. Bernie Sanders, o senador independente que se recusa a se filiar ao partido pelo qual concorre, e Michael Bloomberg entenderam que é mais vantajoso alugar a sigla do que concorrer como candidatos independentes.

No ano passado, o ator Brian Cox, ganhador do Globo de Ouro como protagonista da série "Succession", vivia na Broadway o ex-presidente Lyndon Johnson no espetáculo "The Great Society" (A Grande Sociedade), sobre um período que coincidia com a debacle da Guerra do Vietnã.

Semanas antes de se declarar candidato, Michael Bloomberg estava na plateia e foi cumprimentar o ator escocês no camarim. Disse a ele que mal escapou de ser convocado para a guerra.

E fez questão de frisar: não teria sido enviado como recruta, mas como um oficial, um tenente.

Cox conta que ficou com o comentário na memória. Para ele, o momento ilustrou a sinceridade do bilionário para quem as regras sempre podem ser contornadas por um preço.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.