Como é fácil prever reações a massacres com armas de fogo nos Estados Unidos. Com dois massacres, em Atlanta e Boulder, em menos de uma semana, nem todo luto ou indignação parecem produzir coragem política em Washington. “Agora não é o momento de falar de controle de porte de armas” é o comentário automático de republicanos.
Nenhum país chega perto dos EUA em números, com mais armas do que habitantes. A estimativa é que quase metade dos 857 milhões de armas de fogo nas mãos de civis no mundo pertencem aos americanos.
A cultura armamentista é baseada numa interpretação distorcida da Segunda Emenda da Constituição, cujo texto diz “uma milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança do Estado livre, o direito do povo de portar armas não deve ser infringido".
A Segunda Emenda foi adotada no século 18, depois na fundação da República que se rebelou contra a tirania da monarquia britânica. É uma peça arcaica que não faz sentido no século 21. Mas a emenda se tornou munição favorita nas guerras culturais promovidas pela direita americana, insensível à ideia de que a emenda não protege a acumulação de inúmeras armas automáticas usadas por exércitos e de munição suficiente para praticar, em poucos minutos, assassinatos em massa.
Dias antes do massacre em Atlanta, a Câmara aprovou duas leis de controle de armas, ambas relativas à checagem de antecedentes, que não têm garantia de aprovação no Senado, onde há 50 representantes de cada partido e é preciso o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris.
O mais conservador senador democrata, Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, já se disse contrário à expansão de checagem prevista por uma das leis. O presidente Joe Biden estuda alguma medida executiva, se o Congresso não agir.
Uma pesquisa recente da empresa Morning Consult revelou que 84% dos eleitores americanos são a favor da checagem universal de antecedentes. Mas o apetite pelo controle do porte de armas registrou queda no final do ano passado, segundo o Instituto Gallup. Apenas 57% dos americanos defendem leis mais severas de porte, comparados aos 67% que eram favoráveis, em 2018.
Em 2020, os americanos compraram legalmente quase 40 milhões de armas de fogo e, em janeiro, quando ocorreu a invasão do Capitólio, insuflada por teorias conspiratórias de Donald Trump, as vendas dispararam 60%, com mais de 4 milhões de armas vendidas.
Muitos viram no declínio da National Rifle Association, principal braço do lobby pró-armas, uma chance de mudança política. A NRA enfrenta, há mais de um ano, uma crise financeira e divisões internas, o que diminuiu seu poder de comprar a lealdade de políticos. Mas a lacuna deixada pela NRA foi preenchida por outro bully, Donald Trump. O ex-presidente deixou claro que vai se vingar de republicanos que votaram pelo impeachment e pela certificação da vitória de Biden em janeiro.
Trump organiza sua máquina de influência para as eleições intermediárias de 2022. Os republicanos que concorrerem à reeleição em distritos onde a reforma de leis de porte de armas é popular têm medo de enfrentar o desafio de um protegido de Trump nas primárias, geralmente radicalizada pelos chamados eleitores de agenda única, como aborto ou armas.
O apoio ao Partido Republicano vem encolhendo no país. Mas o direito de assassinar em massa deve continuar a ser protegido, graças a uma minoria dentro da minoria republicana.
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