Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A grande questão da consciência

Experiência da consciência é viva e rica, características para nos fazer acreditar que estamos certos sobre algo, mesmo quando incoerente

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A definição não é perfeita, mas podemos tentar: consciência é a habilidade de experienciar o mundo. Acontece aqui e agora, para que você leia este texto. Conforme seus olhos passam pelos caracteres, você toma consciência das letras, das palavras, frases e do sentido, à sua exclusiva maneira. Uma voz interna lhe dita as frases aqui redigidas. Essa é a voz que também dá a semântica às suas reflexões, a semântica de sua consciência. Porém não há som verdadeiro. Essa voz é criação cerebral, a audição sem barulho, por definição, uma alucinação.

Nem importa, pois a voz está clara. Aliás, toda a experiência da consciência é viva, rica, características cruciais para nos fazer acreditar que estamos totalmente certos sobre algo, mesmo quando incoerente. E muitos intuem que a consciência brota em nós, como se algo oculto ratificasse nossas impressões e inferências.

Escultura colorida de um cérebro, às margens de um corpo d'água
Escultura de cérebro, parte do Brain Project, em Toronto, no Canadá - Zou Zheng/Xinhua

​Esse conceito talvez seja eco de uma ideia que atravessa séculos, cuidadosamente aperfeiçoada pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650). Ele defendeu que uma alma racional, produziria nossa razão e as sofisticações do comportamento humano. Esta substância etérea entraria em contato com o corpo pela glândula pineal. Para o pensador, o cérebro seria um órgão ocupado apenas para promover reflexos instintivos.

Muitas das tentativas de explicar a consciência ainda esbarram na concepção dualista de Descartes, corpo e alma, físico e imaterial. Pois asseguram que algo na matéria cerebral ascende uma sensação não física. Sob a perspectiva dualista, o cérebro pode ser estudado, mas o que é imaterial não. Além disso, consciência não é o conteúdo em si, mas a experiência subjetiva de perceber o conteúdo. É intangível compreender concepções individuais sobre o belo, trágico e nem como saber exatamente como cada um de nós percebe os acontecimentos.

Então, a ciência não pode mensurar a experiência da consciência. Mas ao menos é possível compreender os eventos cerebrais que se correlacionam com relatos humanos da consciência. Mesmo cientes de que muitas das dimensões da consciência são intangíveis para nossa compreensão, podemos entendê-la como um produto de processo físico, mecanizado pelo nosso cérebro, pelo nosso corpo.

Atestamos isso através de simples observações. Pessoas vítimas de lesões cerebrais extremamente graves perdem a capacidade de perceber o entorno e a si mesmas. Outras que sofreram danos na coluna cervical não serão mais conscientes do que acontece em determinadas partes de seus corpos.

Porém, todos os humanos saudáveis não são cientes de todas as partes do corpo. Por exemplo, somos incapazes de perceber a contração de cada um dos nossos músculos envolvidos na execução de um movimento complexo. Tampouco identificamos todos os detalhes da cena em que estamos inseridos. Em outras palavras, não estamos conscientes de tudo, mas realizamos. Com essa observação podemos compreender melhor a consciência e seu aspecto essencialmente biológico.

Note que necessitamos de apenas algumas informações para caminharmos seguramente, mundo afora. Nossa atenção seleciona os dados necessários para nossas interações com o ambiente e despreza outros, atualizando nossas percepções constantemente.

A atenção vigia nosso corpo, o espaço e a atividade mental, a valorizar alguns elementos para moldar nossa concepção da realidade. Ao mesmo tempo, sem esse molde, seria impossível orientar a atenção de forma eficiente. Desta forma o nosso modelo de realidade colapsaria e nosso comportamento também colapsaria. Portanto a atenção fundamenta a construção de um modelo de realidade, mas se torna dependente desse. Nossa experiência subjetiva do mundo, ou seja, nossa consciência, é o instrumento que controla voluntariamente nossa atenção e consequentemente aquilo que reconhecemos em nós e fora de nós.

A compreensão dos mecanismos da consciência é importante. Pode trazer a chave para desvendarmos a gênese dos delírios, situações em que a percepção e interpretação estão desagregados. Assim como para reconhecermos as bases neurais para a existência dos pensamentos autodestrutivos dos deprimidos, cuja consciência se fixa em aspectos negativos da vida.

Talvez até entendamos como a desinformação cria raciocínios incoerentes e, mesmo assim, estabeleça crenças sólidas.

Referências:

Finger, S. Descartes and the Pineal Gland in Animals: A Frequent Misinterpretation. J. Hist. Neurosci. 1995, 4 (3–4), 166–182. https://doi.org/10.1080/09647049509525637.

Graziano, M. S. A. Understanding Consciousness. Brain 2021, 144 (5), 1281–1283. https://doi.org/10.1093/brain/awab046.

Koch, C. What Is Consciousness? Nature 2018, 557 (7704), S8–S12. https://doi.org/10.1038/d41586-018-05097-x.

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