Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

A beleza da ambiguidade, o cérebro que concilia o inconciliável

Fatos ambíguos nem sempre se anulam; quando a semântica é dúbia e não traduz bem a natureza, precisamos recorrer aos fatos

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No final do século 19, a comunidade científica acreditava que em breve não restaria sequer um único mistério a ser desvendado. O espírito da época encantava-se com o ritmo acelerado de descobertas, enquanto expectava um futuro entediante e previsível. O universo estava prestes a ser resumido em uma engrenagem determinista, composta de fórmulas matemáticas.

Esse horizonte de certezas ruiu quando o físico Max Planck inaugurou a mecânica quântica, golpe mortal às arrogantes profecias. Ele havia descoberto que elétrons, quando estimulados, liberam energia não linearmente, mas sempre em unidades fechadas, em quantum. Poucos anos adiante, em 1905, o físico Albert Einstein recorreu a essa descoberta para explicar a propriedade da luz em expulsar elétrons de superfícies metálicas. Esse acontecimento só seria possível se os raios luminosos fossem partículas, quanta emitidos por corpos brilhantes. Essa ideia não foi bem recebida.

Divulgação/Pexels

Mesmo após vencer o Prêmio Nobel de 1922, Einstein continuava sozinho a acreditar no quantum de luz. Nem Planck estava com ele. Isaac Newton, séculos antes, dissera que a luz era composta de partículas. Não importava, a semântica científica estava contra esses gênios. E não era por teimosia acadêmica, mas por haver um fato clássico. Em 1801, Thomas Young projetou raios luminosos contra fendas e provou: a luz é uma onda. Entretanto, novos ensaios confirmavam as ideias de Einstein e de Planck, mas ninguém desmentiu Young.

Mas afinal o que é a luz, onda ou partícula?

É possível que alguns cientistas se agruparam em dois times distintos, cada um a defender apaixonadamente uma das teses. Mas não foi isso que entrou para a história. Os físicos lúcidos, atentos às evidências, formaram consensos e obtiveram a verdade. Mas a verdade é maior do que a nossa semântica, temos os fatos, mas a explicação fura os limites de nossa consciência. Se você, prezada leitora, montar um estudo para decifrar a luz como partículas, concluirá que a luz é matéria. Mas, se elaborar um experimento para analisar a luz como onda, ficará claro que a luz é uma onda. Aceitemos essa ambiguidade, para além do palavrório. Graças aos estudos iniciados por Planck e Einstein, você pode me ler de frente a uma tela luminosa, e Putin tem um arsenal nuclear para ameaçar o mundo.

A matéria que se transforma em energia me faz pensar no cérebro humano, um organizado de química orgânica material capaz de produzir abstrações. Computamos as informações coletadas do mundo, para dentro de nosso crânio e, quando for necessário, devolvemos parte de nosso aprendizado por meio de palavras. Mas muito do saber não cabe em sentenças, a cria é um significado incompleto, imperfeito que nos traz o perigo de afastarmo-nos da verdade. Lacunas de conhecimento e morros de ignorância, por vezes, tornam a eloquência mais impactante do que os conceitos. Quando o significado é dúbio, instável e comporta realidades divergentes; eloquentes, com boas ou más intenções, conseguem espaço para forjar certezas e persuadir. Mas você, minha querida leitora, sabe muito bem que fatos ambíguos nem sempre se anulam. Coexistem e compõem nosso mundo.

Ambiguidade pode acarretar uma resposta emocional inadequada, caracterizada por desconforto psíquico e ansiedade, com a ulterior rejeição e esquiva à incerteza. A tolerância à ambiguidade é a aceitação ao indeterminado, uma propriedade cognitiva que facilita adaptações às mudanças e, portanto, aos ambientes imprevisíveis. Indivíduos bem bonificados com este atributo são mais aventureiros e se atrevem às novas experiências.

Circunstâncias ambíguas trazem riscos. Por exemplo, em certas ocasiões médicas o tratamento pode causar danos inaceitáveis. Por sua vez, Max Planck temeu que a sua descoberta destruiria o alicerce da razão e causaria um caos que, partindo da ciência, atingiria toda a sociedade. Frente à ambiguidade, temos a opção de avaliar as possibilidades, analisar expectativas e estimar probabilidades. Um trabalho cognitivo que requer memória e capacidade de cálculo, com demandas de tempo e inteligência. Outras opções: dar de ombros, delegar a decisão ao tempo ou a outra pessoa, ou aceitar apenas uma parte dos fatos.

A construção da mecânica quântica é um exemplo de tolerância à ambiguidade. Quando a semântica é dúbia e não traduz bem a natureza, que recorramos aos fatos.


Referências:

  1. Rosenblum B, Kuttner F. Quantum Enigma: Physics Encounters Consciousness. Oxford University Press, USA; 2011. 300 p.
  2. Liu D, Sun J, Ren Z, Yang J, Shi B, Qiu J. The neural basis of acceptance of uncertain situations: Relationship between ambiguity tolerance and the resting-state functional connectivity of the brain. Curr Psychol. 2022 Mar.
  3. Iyer ES, Weinberg A, Bagot RC. Ambiguity and conflict: Dissecting uncertainty in decision-making. Behav Neurosci. 2022 Feb;136(1):1-12. doi: 10.1037/bne0000489. Epub 2021 Sep 13. PMID: 34516164.

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