Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente memes

A dispersão da violência e os memes

Códigos digitados compartilhados repetidamente criam e consolidam hábitos, linguagem e senso de grupo; as bases necessárias para a elaboração das teorias conspiratórias

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Em 1487 foi lançado o "Martelo das Bruxas", um livro que ensinava às pessoas comuns a identificarem feiticeiros, a utilizarem a tortura para conseguirem confissões e a prepararem os rituais para matar os hereges na fogueira. A obra assassina foi um sucesso editorial e influente nos primórdios da imprensa. Enquanto a tipografia firmava-se como instrumento de combate ao analfabetismo, aquele livro difundia desinformação, ódio e medo. Suas mensagens tornaram-se memes dispersados, além da tipografia.

Meme é um termo criado pelo biólogo Richard Dawkins em 1976, para descrever ideias que se espalham por repetição. O meme é eficaz se for e difundido indefinidamente e facilmente recordado, resistindo quase que imutável por gerações. Este significado é mais abrangente do que a nossa intuição dá a esses pedaços de informação, massivamente presente nas mídias sociais.

Ilustração mostrando uma mão apertando dois botões em uma mesa de controle. Em cima dos botões está escrito "violência" e "caos", em inglês.
Reprodução/Redes sociais

O espaço digital concede mais uma via de difusão de memes. Códigos digitados compartilhados repetidamente criam e consolidam hábitos, linguagem e senso de grupo; as bases necessárias para a elaboração das teorias conspiratórias. Estas podem cristalizar a violência online para agressões de fato, offline. A época da pandemia da COVID-19, traz seus exemplos. O primeiro-ministro da Hungria Viktor Orban associou a pandemia às migrações, o ex-ministro italiano Matteo Salvini culpou os refugiados pelas infecções na Itália, muçulmanos foram responsabilizados pelo dispersar do vírus na Índia, africanos na China foram discriminados. Nesses cantos do mundo ocorreram violência física contra vulneráveis. Memes viajam e são aceitos passivamente, obliterando a inteligência e o pensamento crítico.

As ameaças abstratas, como a da destruição da "cultura" e da "perda da identidade local" por hábitos de imigrantes, se espalham mais do que as notícias sobre perigos concretos.

Pedaços de informações distorcidas trafegam mais rapidamente do que estudos completos sobre incômodos problemas. Suposições, ilações fortalecem as bases emocionais que inflamam preconceito e racismo. Além disso, transmitem angústia, horror e medo, portanto, incitam a lógica da autodefesa. Memes enviesam conceitos subjetivos de tradição e da força nacional, valorizam a suposta honra de uma ancestralidade que o tempo perverteu, e agora fragilizada, fica à mercê de esfarrapados. Apenas os que sabem da ameaça são confiáveis, os discordantes serão acusados de tolerar e colaborar com a afronta. Estes fatalmente serão considerados parte do problema. Desta forma, os conceitos formados são autorreferentes, imunes às contradições.

A certeza de estar coagido, provoca sensação de que uma ação drástica deve ser tomada. Um ataque, então torna-se a realização da vontade reprimida de um grupo, a violência passa a ser compreendida como necessária, e não mais condenável. Memes corrompem a cognição, o raciocínio passa a desumanizar o outro, a moral é desconstruída e a empatia é escasseada.

O contágio é uma característica de muitos fenômenos sociais e políticos, incluindo conflitos, protestos terrorismo e crime. A violência toma conta de áreas por vezes bem circunscritas, mas pode romper limites e se disseminar geograficamente. Esta dinâmica depende das interações sociais diárias e das estruturas das redes humanas. Memes são fluidos suficientemente para encontrar os poros destas conexões.

Por vezes é fácil saber qual é o lado correto, em que há a decência e a razão, o campo mais afastado dos motores da violência gratuita. Entretanto, mesmo nos lugares cheios de boas intenções, ainda sobra espaço para memes fazerem alguém aceitar aquilo que lhe é oferecido, e acreditar apenas nas cercanias de seus credos. Neste lugar repleto de virtudes, a soberba será uma flor a enfeitar cabecinhas ocas. Este texto também está cheio de memes, um mostruário de mensagens sem originalidades aqui exibidas, que mostram como é fácil pensar por outro.


Referências:

  1. Finkelstein, J. (2022). Memes, viruses, and violence: A nation guide to managing contagious threats. The Journal of Intelligence, Conflict, and Warfare, 5(1), 85–89.
  2. Holger Marcks & Janina Pawelz (2020): From Myths of Victimhood to Fantasies of Violence: How Far-Right Narratives of Imperilment Work, Terrorism and Political Violence.
  3. Lantos D, Molenberghs P. The neuroscience of intergroup threat and violence. Neurosci Biobehav Rev. 2021 Dec;131:77–87.
  4. Di Salvatore J. Does criminal violence spread? Contagion and counter-contagion mechanisms of piracy. Polit Geogr. 2018 Sep 1;66:14–33.

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