Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

O futebol é um exemplo do nós contra eles, violência e união como causa de grupo

Dentro do cérebro do torcedor extremista, a derrota desliga sistemas de autocontrole

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"O futebol é uma caixinha de surpresas." Sim, uma caixinha bem pequenina, sem espaço para muita coisa. "A bola pune", que nada, o que castiga é a competência do adversário. "Quem não faz, toma", outra falácia, fosse assim, o placar zero a zero não seria tão frequente. Minha vã rabugice cede, o esporte é um universo de inspiração para bons frasistas. Que tal a síntese do dramaturgo Nelson Rodrigues: "O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio, cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: — Mata! Esfola!"?

Nelson Rodrigues faz referências ao indivíduo que abdicou de si para se juntar congruente a outros, unidos compartilham convicções e atuam síncronos. O futebol é um canal para a irresistível tendência em formar afiliações, um comportamento inerente ao ser humano.

Briga entre torcedores dos times Querétaro e Atlas, durante partida em Quéretaro, no México, terminou com ao menos 26 feridos em 5 de março de 2022 - AFP

Religiões, visões políticas, identidade étnica são outros canais, cujos temas abastecem certas redes cerebrais, biologicamente programadas para que nós constituamos agremiações. Tudo remonta a nossos ancestrais, prósperos por organizarem-se em alianças, a colaboração mútua abrigava chances maiores de sobrevivência. Estar em um grupo significava, e ainda significa, estar protegido, com acesso a direitos e a privilégios. Enquanto se paga o preço de cumprir obrigações e de seguir rituais.

Sob circunstâncias semelhantes, a coesão intragrupo se fortalece, outras amarras são os vieses de julgamento. Aliados tratam-se com maior empatia, enquanto arbitrariamente atribuem adjetivos negativos aos não congregados. Comunidades competiam e competem para obtenção de monopólio de recursos, os vieses tecem justificativas a mais para a união e violência. Delimita-se o "nós contra eles", neste contexto, ver o infortúnio de um competidor pode causar um prazer especial.

Para torcedores apaixonados, os times de futebol são fontes essenciais de identidade, sustentadas por símbolos, títulos, valores culturais e até mesmo domínios territoriais. Uma adaptação moderna a um enredo de origens pré-históricas. O estado mental de grupos de torcedores assemelha-se ao estado mental de membros de outras organizações sociais. A base neural do fanatismo, exemplo de afiliação extrema, com suas consequências de sacrifícios e fúria, provavelmente é a mesma para o tema futebol ou outro qualquer.

Francisco Zamorano, pesquisador chileno, demonstrou que fãs, ao assistirem à derrota do time "do coração", sofrem como consequência uma redução de atividade nas áreas cerebrais responsáveis por detecção de erros e por monitoramento de conflitos. Basar Bilgiç, cientista de Istambul, apontou que cérebros de fanáticos por times de futebol respondem mais ao prazer e são mais facilmente motivados.

Em termos práticos, os neurônios de obcecados por times são mais influenciáveis pelos resultados de futebol. Dentro dos cérebros de torcedores extremistas, a derrota desliga sistemas de autocontrole e de comportamento adaptativo. O revés, para essas pessoas, será entendido como uma injustiça, uma ofensa contra uma causa, um ataque aos símbolos reverenciados.

Provavelmente estão aí algumas explicações para os fenômenos irracionais que ocorrem dentro e ao redor dos estádios de futebol, como os suicídios de brasileiros após o fim da Copa de 1950, a ascensão dos "hooligans" na Europa e os assassinatos em brigas de torcidas organizadas. Pode ser também que dessa forma expliquemos alguns outros movimentos de fanáticos, de organizações não esportivas.

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