Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Uma doença cerebral pode determinar a violência?

Certas lesões aumentam o risco para o desenvolvimento de ações criminosas

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Em um posto de saúde no interior de São Paulo, um médico neurologista atendia um paciente diferente. Em vez de ter por perto parentes preocupados, uma escolta policial apressada e indiferente.

Eventualmente aquele ambulatório atendia pessoas que cumpriam pena em um presídio a dezenas de quilômetros. Era o caso do homem de 70 anos, presente para a avaliação clínica. Mas o enfermo não sabia dizer o motivo de estar ali, tampouco era capaz de imaginar uma justificativa para tal. Falou, mais de uma vez, que outros presos o tocavam no ombro e afirmavam que iriam protegê-lo, sem ser capaz de entender a razão daquele rito, que se repetia, provavelmente, todos os dias. Nem ao menos compreendia o porquê de estar preso. Suas lacunas de pensamento eram claramente os sintomas da doença de Alzheimer, memórias e as referências biográficas apagadas.

O neurologista não poderia saber se o homem cometera algum crime antes ou depois dos primeiros sintomas da doença, que naquele momento se expressava em franca demência. Não detinha informações para isso.

O médico pensou, brevemente, se aquele senhor seria o personagem central de uma história, há tempos ouvida, que ele considerara uma lenda regional.

Em uma noite macabra, um homem teria saído de seu apartamento sujo de sangue, gritando se alguém saberia de sua esposa. Vizinhos, ao acudirem, teriam encontrado o cadáver da mulher sobre o tapete da sala do casal. O marido a esfaqueara, mas não se recordava da sua ação. Meses após o crime, ele passara os dias perguntado sobre a cônjuge, expressando saudades e preocupação. Não se recordava da violência de suas mãos, tampouco de que já havia feito a mesma questão várias vezes. O neurologista, em solilóquio, desconsiderou a associação das histórias, julgou extravagante demais a coincidência.

Episódios que misturavam crimes e doenças cerebrais não eram novidades para o neurologista. Certa vez ele fora acionado para dizer se um detento de 60 anos manifestava alguma doença neurológica. O prisioneiro havia estrangulado sua companheira, até a morte, como vingança contra traição. Porém o assassino não conseguia dizer como havia descoberto a infidelidade, seu raciocínio era vago, pouco crítico e com conclusões estapafúrdias. Era um caso de delírio de ciúmes em um paciente que demonstrava sintomas iniciais de demência, causada possivelmente por uso abusivo de bebidas alcoólicas.

Enfermaria do Iapen (Instituto de Administração Penitenciária do Amapá), onde vivem isolados cinco presos com transtornos mentais - Adriano Vizoni - 9.jun.22/Folhapress

Há exemplos históricos que correlacionam violência às moléstias de dentro do crânio. Em 1966, no Texas, Charles Whintman, passou a sofrer de cefaleia, obsessão em escrever e pensamentos violentos. Seu último ato de vida foi alvejar pessoas, assassinou 17. Não fez mais vítimas pois a polícia o matou. Em sua necropsia, legistas encontraram uma neoplasia maligna cerebral, acendendo a hipótese de que o tumor, não a sua vontade, determinou o massacre. O massacre causado por Whintman serviu de prenúncio a uma alta sem precedentes no número de homicídios em massa em lugares públicos nos EUA.

Compreender como certas doenças alteram o comportamento ao extremo pode nos dar pistas sobre os substratos neurológicos que predispõem à contravenção. O neurologista Ryan Darby, da Universidade Vanderbilt, em Nashville (Tennessee), nos dá algumas ideias para desvendar esse problema. Ele coletou informações de 17 pessoas que cometeram crime após sofrerem alguma lesão cerebral. Desse grupo, duas pessoas haviam melhorado depois de tratadas. Darby descobriu que não há um locus cerebral específico, cujo desligamento por alguma avaria desbloquearia impulsos criminosos. Com algumas coincidências, os casos clínicos avaliados sofreram lesões em áreas diferentes um do outro.

No entanto os sítios danificados pertenciam a uma rede cerebral única, que conecta regiões cerebrais para cuidar da moralidade, de escolhas conduzidas por preferências subjetivas, e teoria da mente —esta última é a habilidade humana que permite alguém inferir como o outro pensa. Mas essa rede não se ocupa de empatia e de controle cognitivo.

Ilustração de um cérebro humano
Ilustração mostra o cérebro humano - Pete Linforth por Pixabay

Contudo a disfunção dessa circuitaria não é uma força inequívoca que empurra seu portador ao crime. Uma minoria de pessoas afetadas por esse distúrbio realizará atos contra a lei, que possivelmente não serão violentos, como pequenos furtos. Outros fatores, como genética, circunstâncias do ambiente, amparo social e as características da personalidade antes do adoecer, podem agir de forma independente para o crime, ou interagindo com as consequências de uma determinada moléstia.

Certas lesões cerebrais aumentam o risco para o desenvolvimento de ações criminosas, mas não devem ser consideradas como sua causa única, ou ao menos não tão deterministas assim. Mas que fique claro: um adulto que muda seus modos e comete seu primeiro crime pode estar a expressar o primeiro sintoma de uma doença cerebral.

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