Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Dois livros de fotos que documentam o auge da pandemia pelo mundo

Com acertos e clichês, obras retratam cidades desertas, atuação dos profissionais de saúde e protestos

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Às vezes, parece que faz um tempão. Outras, que foi ontem. Para mim, parece que durou pouco; mas começo a lembrar e vejo que durou muitíssimo. Seja como for, a quarentena já faz parte do passado —espero que continue por lá.

Folheio dois livros bem grandes, editados neste ano, que reúnem centenas de fotos da pandemia.

"The Year that Changed Our World", ou o ano que mudou o nosso mundo, organizado por Marielle Eudes (editora Thames e Hudson), tem mais de 400 páginas, segue uma ordem cronológica (do inverno de 2020 à primavera de 2021) e, apesar de trazer fotos de todos os lugares do mundo, tem certo viés francês (os arquivos são da France Presse).

Um pouco menor e menos pesado, "The Year Time Stopped", ou o ano em que o tempo parou, de Christina Hawatmeh e Nour Chamoun (editora Harper One), organiza-se por temas ("espaços vazios", "heróis", "sinais de mudança") e tem, debaixo de cada imagem, um comentário do fotógrafo que a produziu. Achei melhor e é mais barato.

A ilustração traz quatro médicos, que usam equipamentos de proteção. O fundo é verde claro.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

O difícil, nesse tipo de coleção, é fugir do já conhecido. As fotos de ruas e shoppings desertos, por exemplo, não têm como ser evitadas, se o que se pretende é documentar a absoluta novidade daquela situação.

O livro da France Presse optou por juntar várias fotos de avenidas (Barcelona, Beirute, Santiago) e lugares turísticos (Louvre, torre Eiffel, Times Square, Veneza) sem ninguém. O efeito é engraçado: depois de uma surpresa inicial, prevalece a mesmice.

É como se, quando começou o "lockdown", fizesse todo o sentido mostrar isso na primeira página de um jornal. Passado o choque, é só a foto de uma avenida sem carros.

O problema não é fácil de solucionar: como ilustrar o vazio? Outro problema, associado a esse. O fenômeno foi mais ou menos "o mesmo" em qualquer lugar do mundo. Como evitar a repetição?

Marielle Eudes provavelmente achou que, em vez de fugir da repetição, devia justamente enfatizá-la. Estávamos, afinal, diante de um acontecimento universal, que nos fez mais próximos de nossos semelhantes em qualquer parte do mundo.

Sucedem-se, assim, fotos e mais fotos de enfermeiros e enfermeiras, com os rostos marcados por horas de uso de equipamentos de proteção. Ou janelas e mais janelas de prédios, com as silhuetas das pessoas aplaudindo, através do deserto noturno das cidades, o pessoal dos serviços de saúde.

Junte a ideia de vazio com a ideia de universalidade —surgem aí fotos interessantes, também frequentes em todo lugar do mundo, de enormes instalações hospitalares de emergência, preparando-se para receber os pacientes da Covid, ou de centenas de aviões pousados simetricamente num aeroporto.

Muitas dessas imagens se salvam pela pura qualidade estética, mais evidente no livro de Hawatmeh e Chamoun do que no grandão da France Presse.

Mas, afinal, será que foi tudo "só isso"? No fundo, algo menos espetacular visualmente do que a novidade da situação parecia sugerir?

Há algumas saídas para esse tipo de impressão. O exótico, por exemplo. Nosso país comparece com a foto de um cacique de cocar sendo vacinado no Pará; na Índia, um policial impõe as regras da quarentena de dentro de um capacete enfeitado de chifrinhos vermelhos como o vírus.

O insólito, naturalmente, ajuda: patos caminhando num dos bulevares de Paris; as mãos de um noivo e uma noiva, enluvadas de plástico, num casamento na Arábia Saudita; um papa, sozinho da silva, no Vaticano.

A intensidade das emoções, ao lado da pura beleza visual, é naturalmente a coisa mais difícil de conseguir. Afinal, qualquer coisa parecia "fotografável" nos momentos mais estranhos da pandemia.

Dando muito destaque aos protestos que surgiram durante a Covid (como no caso do assassinato de George Floyd), o livro de Hawatmeh e Chamoun traz fotos que, ao contrário do usual na documentação, parecem de fato gritar.

Um ativista contra o racismo precisa tirar a máscara: derramam leite em seu rosto, para aliviá-lo do spray de pimenta usado pela polícia americana. Não tiram a máscara, por sua vez, as dezenas de presas comprimidas numa cela mínima, num presídio das Filipinas.

Uma frase de Albert Camus é usada por Marielle Eudes na epígrafe do seu livro. "O que admiramos numa época de peste é que há mais o que admirar do que o que desprezar nos homens." Apesar de Bolsonaro e seus adeptos? Que seja.

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