Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Descrição de chapéu Eleições 2022

Presidente candidato pratica canibalismo político

Bolsonaro não hesita em jantar dignidade alheia para posar de paladino ou machão

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Poucos livros marcaram tanto quanto o primeiro lido sobre yanomamis, "O Círculo dos Fogos", de Jacques Lizot (1988). Em especial, seu relato sobre a cerimônia fúnebre "reahu", em que um pouco de cinzas de gente valorosa falecida é ingerido com mingau de banana por parentes e aliados.

De pronto vem à mente um paralelo com o sacramento católico da comunhão, em que fiéis recebem a hóstia, corpo de Cristo transmutado em pão. Um mesmo princípio: interiorizar, simbolicamente, o que há de melhor no desaparecido.

Foi com desgosto que se viu o reahu levantar da tumba pela boca do hoje presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (não se perca pelo nome do meio). Em 2016, o então deputado federal afirmou a Simon Romero, do New York Times, que já tivera oportunidade e disposição para comer gente —aqui, em sentido literal.

Presidente Jair Bolsonaro fala gesticulando as duas mãos
Com a péssima repercussão do caso das venezuelanas, Bolsonaro mais uma vez tentou escapar da responsabilidade ao se desculpar sem se desculpar, dizendo que suas palavras foram tiradas de contexto - Evaristo Sá - 17.out.22/AFP

Contou que a tentação teria ocorrido na comunidade de Surucucu (RR). "Morreu um índio e eles estão cozinhando. Eles cozinham o índio, é a cultura deles. Cozinha por dois, três dias e come com banana", diz o capitão no vídeo gravado pelo filho Carlos e divulgado pelos próprios cupinchas. Comeria sem problema.

O janonismo no entorno da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva ressuscitou o trecho para pregar em Bolsonaro a pecha de canibal. Uma reencarnação do espectro João Santana, marqueteiro de Dilma Rousseff que em 2014 crucificou Marina Silva e uma "banqueira", que iriam tirar comida do prato das crianças (e não foi capaz de repetir o sortilégio em 2022 com o fracassado Ciro Gomes).

Bolsonaro estava contando lorota. Pode ter ido a Surucucu, passe, mas jamais os yanomamis convidariam ou aceitariam um estranho, menos ainda um militar dado a desprezá-los, para participar de cerimônia tão importante.

Ao usar o vídeo como munição, petistas acreditavam dar o troco ao candidato na mesma moeda usada por ele. Em verdade, ajudaram a pregar mais um cravo na dignidade dos yanomamis, ao indiretamente dar por fato sua condição de canibais, como se comessem a própria carne de parentes e guerreiros para se alimentar.

É Bolsonaro quem vive de dentadas na reputação dos outros, nutrindo com suas baixarias os piores instintos e emoções dos que nele votam. Foi assim com quilombolas, que igualmente odeia e desumaniza, ao se referir a peso em arrobas.

Foi assim com os moradores do Complexo do Alemão, que generalizou como bandidos e membros de facção criminosa. Isso porque Lula andou por lá e foi bem recebido, reunindo mais gente do que a extrema direita tem conseguido.

Foi assim com as meninas venezuelanas que se maquiavam num sábado à tarde no Distrito Federal. Em perversão digna de Damares Alves, concluiu que eram exploradas como prostitutas porque empobrecidas pela ditadura chavista.

Os janonistas erraram de novo o foco, colando-lhe o rótulo de pedófilo. Isso quando o real escândalo está na pressuposição de que enfeitar-se é coisa de garota de programa, quaisquer que fossem as idades das venezuelanas.

Há vídeos em circulação de pelo menos três ocasiões em que Bolsonaro conta a história, todos com conteúdo que não deixa margem a dúvida. Com a péssima repercussão, o candidato mais uma vez tentou escapar da responsabilidade ao se desculpar sem se desculpar, dizendo que suas palavras foram tiradas de contexto.

Não foram. As cenas de difamação estão aí para quem quiser ver e tirar suas conclusões. A censura imposta pelo TSE às palavras reais do candidato é não só incompreensível, juridicamente, como ineficaz na prática.

O problema maior é que meio Brasil acredita na versão de Bolsonaro, mesmo que absurda. Ou, quem sabe, precisamente por ser absurda. "Credo quia absurdum", diria o carola pensando repetir Santo Agostinho.

E ainda chamam os yanomamis de selvagens. Quem é o canibal nessa história?

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