Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Três verdades para conter entusiasmo pós-eleitoral

País imaturo, metade do Brasil é cúmplice de Bolsonaro, e todos cultuam salvadores da pátria

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O maior mentiroso que já ocupou a Presidência da República sabe de cor um único versículo (João 8, 32): "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Repete-o mais a torto que a direito, sem ruborizar.

Como bom cético e jornalista profissional, aprendi que verdade não se conhece, se busca. Quem quiser acreditar na miragem de verdades imutáveis que a encontre na bíblia e noutras informações inverificáveis dos falsos profetas e pastores televangelistas. Honestidade intelectual e ciência são escravas da dúvida.

Lula discursa na av. Paulista após vitória no 2º turno, no domingo (30) - Eduardo Knapp/Folhapress

Neste mundo só existem verdades provisórias, lastreadas em fatos, evidências e medições. Estão sempre sujeitas a revisão, à medida que o surgimento de novos e melhores fatos, evidências e medições venha contradizê-los. Ainda sob o calor da votação de domingo (30), propõem-se aqui três delas para arrefecer o entusiasmo.

Verdade 1

Quase metade dos eleitores (49,1%) votou em Bolsonaro, e pela segunda vez. Em números precisos, 58.206.354 conterrâneos —parentes, amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de escola— concordam com o presidente o bastante para tentar reelegê-lo.

São 58,2 milhões de brasileiros maiores de 16 anos que não veem escândalo na conduta presidencial na pandemia. Ou fazem pouco das mais de 680 mil mortes, ao negar que Bolsonaro teve responsabilidade direta por 120 mil delas, ao menos.

Não estranha, visto que tantos acreditaram em hidroxicloroquina, ivermectina e proxalutamida. Em pouco tempo a ciência demonstrou serem inócuas contra o coronavírus, mas não adiantou.

Há que reconhecer, entretanto, a necessidade de ouvir e tentar compreender o que arrasta tantas pessoas a tamanhos equívocos. Não para lhes dar razão, que não têm, à luz do melhor conhecimento disponível.

Importa é entender como se convencem, para fundamentar na realidade a criação de argumentos, canais e retóricas que possam reconquistá-los para a esfera pública. Sem estigmatizar ou ridicularizar: estamos condenados a crer que ao menos alguns ainda aceitarão a superioridade de fatos sobre opiniões.

Para os impenitentes e irrecuperáveis, aqueles que rezam pelo credo da inferioridade dos pobres, negros ou mulheres, pior legado da escravidão, toda pregação racional é vã. Sobre eles deve pesar o jugo da lei.

Verdade 2

A sociedade brasileira continua imatura, pois ainda se enxerga necessitada de um "deus ex machina", um salvador da pátria. Uma pátria tão intratável que as pessoas só vislumbram redenção com recurso a uma figura paterna autoritária ao estilo de Getúlio, Jânio, milicos, Collor ou Bolsonaro.

Nossas instituições funcionam mal e sempre funcionaram mal, corroídas por privilégios de classe, clientelismo, favores, corporativismo, meritocracia de fachada, nepotismo e arreglos. Legislativo e Judiciário, que deveriam contrabalançar excessos do Executivo, continuam infestados por esses cupins.

Se as instituições funcionassem bem, Arthur Lira jamais sacaria seu orçamento secreto, Lula não ficaria 580 dias preso, Dilma não sofreria impeachment, Jefferson não seria agraciado com negociação, Zambelli não sairia impune da pistolagem e Silvinei não seria comandante do motim na Polícia Rodoviária Federal.

Verdade 3

A esquerda não está imune a essa doença infantil da república. Basta ver o culto à personalidade de Lula, um populista conciliador repaginado como estadista só por ser o único capaz de derrotar Bolsonaro. Desafortunada a terra que precisa de heróis, dizia Brecht.

Não é demérito do presidente eleito, um líder de admiráveis resiliência e habilidade. Mas sim nosso, de cidadãos infantilizados que esperamos ver tudo resolvido com carisma e boas intenções, na esperança de que caia do céu um projeto justo e factível de país.

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