Paul Sorvino, o ator americano que morreu na última segunda-feira, tinha o porte e a frieza de uma geladeira. Mas dentro do bloco havia uma alma delicada: era também cantor de ópera, escultor e professor.
Foi convidado em 1989 para ser um gângster em "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese. Aceitou o papel com relutância porque não tinha nada de mafioso. As filmagens começaram e ficou cabreiro: o filme era de uma violência inconcebível.
Quis abandoná-lo e pagar a multa, mas foi impossível. Perguntava-se: e agora? Até que um dia, no espelho, ao dar o nó na gravata, notou algo oculto no fundo do olho. Era uma ponta de gelo. O gelo que, de tão frio, queima, lacera: a violência.
Criou então Paulie, o bloco de banditismo que não derrete nunca. Dá ordens sumárias, mal se move e leva o charuto à boca com lentidão. Exala a autoridade da frieza desumana.
O ator era pai de Mira Sorvino, que ganhou um Oscar pela atuação em "Poderosa Afrodite", de Woody Allen. Foi uma das primeiras a denunciar Harvey Weinstein, o produtor e predador sexual. Paul Sorvino falou ao repórter de um site durante o julgamento.
Na maior pachorra, ele caminha para entrar num carro. Diz esperar que Weinstein seja condenado à prisão perpétua. Porque, se encontrá-lo na rua, matará o "motherfucker". Latente no fundo do olho, a ferocidade extravasa para a fala.
"Os Bons Companheiros" confere beleza à violência a ponto de torná-la alegre. Revisto, em que pese sua plasticidade espetacular, o filme deixa um gosto ruim por ser ingênuo.
Ele não seria o mesmo —um "O Chefão" sem contexto social— não fosse por Ray Liotta, que morreu há pouco também. A fúria dele é oposta à de Sorvino. Traiçoeiro e vaidoso, vai num salto da fofura à faca na carótida do outro, e dali para a gargalhada pérfida.
Ray Liotta é um felino selvagem. Passa macio da placidez para o ataque, do beijo para o tiro. Pauline Kael acertou quando disse que o cinema inteiro cabia no título de um de seus livros: "Kiss Kiss Bang Bang".
Ou melhor: tinha razão quanto à maioria dos filmes. Nos que são arte autônoma, a coisa é complexa. Tanto que "Trintignant, ator complexo" é o título de uma série de seis longas reportagens publicadas pelo Le Monde.
Jean-Louis Trintignant é outro ator que morreu agora, em junho. Com 122 filmes no currículo, era uma instituição francesa —malgrado ele mesmo. Decidiu ser ator para vencer a timidez e, com 1,72 metro, o complexo de tampinha.
Vestia-se como um qualquer, tinha cabelos ralos e pinta de alienado porque pilotava carros de corrida. Dava-se mal no amor —até que namorou Brigitte Bardot no auge... Não chamava a atenção na rua ou em festas. Mas era um gigante na tela. Justamente porque permanecia o mesmo.
Na virada dos anos 1960-1970, Trintignant encarnou o ar e a sensibilidade do tempo em "Z", "O Conformista" e "Minha Noite com Ela".
No primeiro, de Costa-Gavras, faz um juiz intransigente que, por detrás de óculos escuros, investiga o assassinato de um deputado da oposição (Yves Montand) pelos milicos da ditadura grega.
O cinema vinha abaixo quando, ao interrogar o assassino, um coronel bolsonarista, o ator batia na mesa e cobrava: "Quero provas!". Representava a violência de quem quer justiça, a valentia dos fracos com razão contra a irrazão dos fortes: o sal da terra.
Em "O Conformista", de Bernardo Bertolucci, Trintignant foi para o campo oposto. Interpretou um tipinho que, por ressentimento, para se adaptar aos mandões, e por poder, vira um fascista que trai e mata. A violência é a redenção do homem qualquer sem escrúpulos.
Mal compreendido no lançamento, "Minha Noite com Ela" está hoje nas listas de obras primas do cinema. Há motivos de sobra. É o mais intenso dos contos morais de Éric Rohmer. Com brandura e pertinência, fala de religião, sexo, intuição, marxismo, até de matemática.
O eixo do filme é a chamada aposta de Pascal. Baseado numa metafísica das probabilidades, o suave filósofo disse que vale mais a pena crer em Deus, mesmo que seja impossível provar sua existência. Se Deus não existe, crer é um mal finito; se existe, o bem do crente é infinito.
Católico, o personagem de Trintignant se esgarça entre a morena e a loira, o prazer agora e a felicidade futura, a violência da razão e a do coração —que tem razões que a própria razão desconhece.
Faz então sua aposta. Ela é a mesma dos atores que, à procura de si mesmos, se tornam Trintignant; e nos dizem: aposte você também.
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