Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A violência segundo Paul Sorvino, Ray Liotta e Jean-Louis Trintignant

Mortos recentemente, de 'Os Bons Companheiros' a 'Minha Vida com Ela', atores nos convidam a apostar na vida

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Paul Sorvino, o ator americano que morreu na última segunda-feira, tinha o porte e a frieza de uma geladeira. Mas dentro do bloco havia uma alma delicada: era também cantor de ópera, escultor e professor.

Foi convidado em 1989 para ser um gângster em "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese. Aceitou o papel com relutância porque não tinha nada de mafioso. As filmagens começaram e ficou cabreiro: o filme era de uma violência inconcebível.

Na borda esquerda da ilustração está representado em grafite um homem de chapéu e sobretudo, a figura do homem é pequena, e ao seu redor um contorno de si extravasa em linha azul. No centro da ilustração, há uma figura de homem, feita com traços rápidos de pincel cinza. Abaixo, como se estivesse deitada, outra representação masculina, em cor preta e com marcas expressivas de pincel. Por fim, na lateral direita da ilustração a ultima figura masculina, dessa vez em giz vermelho.
Publicada nesta sexta-feira, 29 de julho de 2022 - Bruna Barros

Quis abandoná-lo e pagar a multa, mas foi impossível. Perguntava-se: e agora? Até que um dia, no espelho, ao dar o nó na gravata, notou algo oculto no fundo do olho. Era uma ponta de gelo. O gelo que, de tão frio, queima, lacera: a violência.

Criou então Paulie, o bloco de banditismo que não derrete nunca. Dá ordens sumárias, mal se move e leva o charuto à boca com lentidão. Exala a autoridade da frieza desumana.

O ator era pai de Mira Sorvino, que ganhou um Oscar pela atuação em "Poderosa Afrodite", de Woody Allen. Foi uma das primeiras a denunciar Harvey Weinstein, o produtor e predador sexual. Paul Sorvino falou ao repórter de um site durante o julgamento.

O ator Paul Sorvino em 2018 - Phil McCarten/Reuters

Na maior pachorra, ele caminha para entrar num carro. Diz esperar que Weinstein seja condenado à prisão perpétua. Porque, se encontrá-lo na rua, matará o "motherfucker". Latente no fundo do olho, a ferocidade extravasa para a fala.

"Os Bons Companheiros" confere beleza à violência a ponto de torná-la alegre. Revisto, em que pese sua plasticidade espetacular, o filme deixa um gosto ruim por ser ingênuo.

Ele não seria o mesmo —um "O Chefão" sem contexto social— não fosse por Ray Liotta, que morreu há pouco também. A fúria dele é oposta à de Sorvino. Traiçoeiro e vaidoso, vai num salto da fofura à faca na carótida do outro, e dali para a gargalhada pérfida.

Ray Liotta é um felino selvagem. Passa macio da placidez para o ataque, do beijo para o tiro. Pauline Kael acertou quando disse que o cinema inteiro cabia no título de um de seus livros: "Kiss Kiss Bang Bang".

Ou melhor: tinha razão quanto à maioria dos filmes. Nos que são arte autônoma, a coisa é complexa. Tanto que "Trintignant, ator complexo" é o título de uma série de seis longas reportagens publicadas pelo Le Monde.

Jean-Louis Trintignant é outro ator que morreu agora, em junho. Com 122 filmes no currículo, era uma instituição francesa —malgrado ele mesmo. Decidiu ser ator para vencer a timidez e, com 1,72 metro, o complexo de tampinha.

Vestia-se como um qualquer, tinha cabelos ralos e pinta de alienado porque pilotava carros de corrida. Dava-se mal no amor —até que namorou Brigitte Bardot no auge... Não chamava a atenção na rua ou em festas. Mas era um gigante na tela. Justamente porque permanecia o mesmo.

Na virada dos anos 1960-1970, Trintignant encarnou o ar e a sensibilidade do tempo em "Z", "O Conformista" e "Minha Noite com Ela".

O ator francês Jean-Louis Trintignant, durante entrevista coletiva no Festival de Cannes de 2017 - Laurent Emmanuel/AFP

No primeiro, de Costa-Gavras, faz um juiz intransigente que, por detrás de óculos escuros, investiga o assassinato de um deputado da oposição (Yves Montand) pelos milicos da ditadura grega.

O cinema vinha abaixo quando, ao interrogar o assassino, um coronel bolsonarista, o ator batia na mesa e cobrava: "Quero provas!". Representava a violência de quem quer justiça, a valentia dos fracos com razão contra a irrazão dos fortes: o sal da terra.

Em "O Conformista", de Bernardo Bertolucci, Trintignant foi para o campo oposto. Interpretou um tipinho que, por ressentimento, para se adaptar aos mandões, e por poder, vira um fascista que trai e mata. A violência é a redenção do homem qualquer sem escrúpulos.

Mal compreendido no lançamento, "Minha Noite com Ela" está hoje nas listas de obras primas do cinema. Há motivos de sobra. É o mais intenso dos contos morais de Éric Rohmer. Com brandura e pertinência, fala de religião, sexo, intuição, marxismo, até de matemática.

O eixo do filme é a chamada aposta de Pascal. Baseado numa metafísica das probabilidades, o suave filósofo disse que vale mais a pena crer em Deus, mesmo que seja impossível provar sua existência. Se Deus não existe, crer é um mal finito; se existe, o bem do crente é infinito.

Católico, o personagem de Trintignant se esgarça entre a morena e a loira, o prazer agora e a felicidade futura, a violência da razão e a do coração —que tem razões que a própria razão desconhece.

Faz então sua aposta. Ela é a mesma dos atores que, à procura de si mesmos, se tornam Trintignant; e nos dizem: aposte você também.

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