Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Oscar

Oscar 2022: Bolsonaro interpreta verme porque já tem o físico para o papel

Como a função do jornalismo é separar o joio do trigo, para publicar o joio, segue uma apreciação do cardápio do ágape

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O Oscar é tão indigesto quanto a linguagem político-culinária. É duro engolir frases como Alckmin é uma azeitona na empada do Lula, Bolsonaro enfiou o pé no açaí, Ciro viajou na maionese, Moro é um banana, Doria e Mourão são farinha do mesmo saco, as eleições vão acabar em pizza.

Mas a língua da cozinha bruta descreve direito o Oscar x-tudo que Hollywood servirá na noite de domingo. O abominável sanduichão do cinema goteja banha, ofende o olfato, enfia o mau gosto goela abaixo da freguesia planetária, dá azia. Não há sal de frutas que dê jeito.

O festim não é de todo intragável. É possível apreciar os babados dos doces de coco. Rir dos marmanjos que penduram melancia no pescoço para aparecer. Imaginar que as limusines viram abóbora à meia-noite.

Ilustração que representar uma pessoa negra levando um hambúrguer que tem nas mãos à boca. De dentro do hambúrguer, entre os ingredientes sai uma figura de um homem amarelada
Ilustração publicada em 25 de março - Bruna Barros

O regabofe às vezes tem até quitutes picantes. Ao ganhar a estatueta de melhor ator por "Kramer vs. Kramer" (bleargh!), Dustin Hoffman disse, olhando o Oscar: "Ele não tem genitália, mas segura uma espada". Freud não diria melhor.

Quanto aos filmes, o Oscar desse ano não é um x-tudo qualquer: é de um food truck de porta de estádio. Hollywood está por baixo porque não é mais a cloaca onde se deposita o lixo do mundo —foi substituída pela internet. Seus filmes são ruins até na ruindade.

Como a função do jornalismo é separar o joio do trigo —para publicar o joio— segue uma apreciação do cardápio do ágape.

'Licorice Pizza'

Tem comida já no título, mas só a turminha gourmet pode entendê-lo. Ele se refere a uma cadeia de lojas do sul da Califórnia que, nos anos 1970, vendia LPs. Negros, os discos lembram alcaçuz, que em inglês é "licorice". Aprendeu?

Uma tradução cabível seria "Bolachas Pretas", que é como Alckmin fala dos seus LPs de bolero. Pé de valsa, o Picolé de Chuchu tem saudade das noites de sábado de antanho, quando saracoteava pelos salões de Pinda com dona Lu nos braços, soprando-lhe ao ouvido trovas de Agustín Lara.

Pois então: "Licorice Pizza" é nostalgia do mesmo jaez, mas roqueira. Como não é romance de formação, ele atola num passado que só diz respeito a quem dele participou. Para bugres ao sul do Equador, é frio como pepino, abacaxi indescascável.

'Amor, Sublime Amor'

Para os fãs do gênero, o cozidão de Spielberg serve de prova que o original é insuperável.

'Duna'

Outro refogado reciclado. Vide verbete acima.

'O Beco do Pesadelo'

Vide de novo o verbete porque é a terceira refilmagem que concorre a melhor filme. Sem imaginação, Hollywood experimenta releituras de receitas da vovó, e só as piora.

'Inverno em Chamas'

Quando concorreu ao Oscar de documentário, em 2016, ninguém ligou. Agora, com a invasão russa, ganharia de lavada, já que é unânime a simpatia pela causa ucraniana —exceto na extrema direita (Bolsonaro) e na esquerda (PC do B).

Há cenas chocantes da luta do povo contra a polícia. Contudo, falta história e contexto ao filme, que quase não fala da Rússia, da Otan, dos EUA e mesmo da Ucrânia toda, restringindo-se à praça Maidan, em Kiev.

Há filmes que, mesmo não sendo lá essas coisas, anteveem algo do futuro. O Brasil não será invadido. Mas, do jeito que Bolsonaro age, uma "primavera em chamas" pode acontecer quando ele tentar roubar as eleições de outubro.

'Belfast'

Atenção para uma regra cardinal do cinema: filme cujos protagonistas são crianças dão engulhos. O de Kenneth Branagh é uma gororoba sentimentaloide de vomitar.

'Drive My Car'

O único filme adulto na liça é japonês. Não é divertimento, é arte. Ryusuke Hamaguchi, o diretor, trata de culpa e remorso, amor e criação artística. Não é ralo nem faz concessões à gororoba de Los Angeles.

No centro do filme estão ensaios de "Tio Vânia", de Tchékhov. O diretor está de luto porque sua mulher morreu e se acha responsável. O ator principal está perdido na vida. A motorista do diretor tem um passado obscuro. Ninguém come sushi.

Tudo é dito com um minimalismo que se estende aos figurinos, à iluminação, aos movimentos da câmera e à paisagem japonesa. Há sequências clarividentes com a atriz Yoo-rim Park, que é muda. Ela faz o seu papel na linguagem de sinais, prova que a arte vai além das palavras.

'Depoimento da Wal do Açaí'

Não está no Oscar porque nem filme é. Mas merecia. É cine-verdade com diálogos subversivos entre procuradores e Wal, uma brasileira séria e trabalhadora. Nunca a miséria da política oficial veio à luz de modo tão acachapante. Ausente, mas evidente, Bolsonaro interpreta um verme. Tem o "physique du rôle".

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