Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Até presidente discute se Gérard Depardieu é motivo de orgulho ou vergonha

Ator é acusado em 13 casos de assédio e estupro e, para piorar, todo mundo o via passar a mão em mulheres nas filmagens

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O ator Gérard Depardieu mora sozinho numa mansão parisiense do século 19. Ela tem dez quartos, piscina coberta, esculturas de Rodin, Camille Claudel, Brancusi e centenas de telas de pintores contemporâneos. Quando sai, é de moto. Não afivela o capacete e leva três celulares.

Da esquerda para a direita um homem gigantesco corre em direção à 3 pequenas figuras femininas.
Ilustração de Bruna Barros - Folhapress

Gosta de ficar em casa. Lê, cozinha, bebe feito um gambá. Já se gabou de tomar 14 garrafas de vinho num dia. Também se droga; funga heroína para não ter de injetá-la. Tem 75 anos, 1,80 metro e 130 quilos. Vaga pelos salões e o jardim sem camisa e de cueca.

Foi com esse modelito que, em agosto de 2018, recebeu Charlotte Arnould, a filha de uma amiga que queria conselhos para ser atriz. Câmeras de segurança gravaram o encontro. Ele aparece acariciando os seios e as coxas da atemorizada moça anoréxica de 22 anos. Vão para seu quarto.

Não havia câmeras ali. A jovem diz que ele a estuprou. Contra o conselho da mãe, voltou noutro dia à mansão e foi violentada de novo. Ela o processou, e Depardieu alega que o sexo foi consensual. O caso está na Justiça. Dada sua folha corrida, é duro lhe dar crédito.

São 13 os casos em que é acusado, com pormenores escabrosos, de assédio e estupro. Para piorar, todo mundo o via passar a mão em mulheres durante filmagens e fazer propostas obscenas. Ninguém ligava. Estava em vigor o silêncio abafado dos anos antes do Me Too.

Seus abusos também eram admitidos porque o cinema francês lhe deve muito. Com mais de 200 filmes, ele foi maná nas bilheterias. Em 1986, levou 15 milhões de pessoas ao cinema com apenas três filmes. Era pôr Depardieu no elenco que o dinheiro para a produção jorrava.

A admiração não se restringia ao povo e aos empresários. O ator foi dirigido e enaltecido por Truffaut e Resnais. Para júbilo dos críticos, representou o simplório Obélix e o panfletário Danton, além de personagens de Molière, Balzac e Victor Hugo.

De Sarah Bernhardt a Alain Delon, de Jean Gabin a Catherine Deneuve, a França é um país de intérpretes veneráveis. Nenhum tem o brio de Depardieu. "Nunca estive com um ator que me impressionasse tanto", disse Robert De Niro, que atuou com ele em "Novecento".

A aura de vaca sagrada o protegia. Amiúde bêbado, não decorava diálogos de seus filmes e tinha surtos de fúria. Fez xixi no corredor do avião num voo para Dublin. Foi detido por embriaguez ao provocar um acidente de moto.

O governo aumentou a taxação das grandes fortunas, em 2012, e ele renegou a nacionalidade francesa. Tornou-se cidadão russo. Não ficou nisso: virou cortesão de Putin. Na França, pulou do clã socialista para o colo de Sarkozy e depois para o da extrema direita.

A deterioração da sua imagem vem de longe. Ela o levou a perder um Oscar, em 1991. Fizera o astro de "Green Card", comédia romântica de sucesso. Hollywood lhe abriu as portas e o Oscar era considerado barbada. Mas aí se sabotou.

Disse numa entrevista que participara de estupros coletivos quando menino: "Era normal nas circunstâncias, fez parte da minha infância". Explicou que abandonara a escola no primário e fora um bandidinho. O fuzuê foi tamanho que teve de dar adeus à carreira nos Estados Unidos.

Na França, contou com a tolerância da terra do marquês de Sade com a indecência. Até Catherine Deneuve falou que Dedure Teu Porco —versão francesa do Me Too— interessava aos "inimigos da liberdade sexual, os extremistas religiosos, os piores reacionários."

O caldeirão entornou no mês passado. Foram ao ar excertos de sua viagem à Coreia do Norte. Entre outras boçalidades, disse que mulheres andam a cavalo porque roçam o clitóris na sela e gozam, "são umas vagabundas". Afirmou isso ao ver uma menina de dez anos cavalgar.

Desde então, não passa dia sem que se publique algo candente sobre o ator, sem que o chamem de idiota ou ídolo. Até o presidente Macron entrou na treta; falou que ele era um orgulho da França. Mas sua ministra da Cultura acusou-o de envergonhar a pátria.

Vi Depardieu ao vivo há 20 anos, num domingo de Páscoa gélido na catedral de Notre-Dame de Paris. Recitou trechos das "Confissões" de santo Agostinho. A igreja estava abarrotada e em silêncio. "Até quando?", perguntava o ator, porta-voz altivo do filósofo.

Referia-se às inconstâncias da alma, à sôfrega busca por "calma e tranquilidade". Foi uma iluminação sem nada de místico, uma experiência única, inesquecível mesmo. Só um artista sublime é capaz disso. O que não evita que seja um monstro.

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