Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times Guerra na Ucrânia Rússia

Guerra da Rússia vai refazer o mundo

A combinação de conflito, choques de abastecimento e inflação alta é inevitavelmente desestabilizadora

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Um novo mundo está nascendo. A esperança de relações pacíficas se dissipa. Em vez disso, temos a guerra da Rússia contra a Ucrânia, ameaças de hecatombe nuclear, um Ocidente mobilizado, uma aliança de autocracias, sanções econômicas sem precedentes e um enorme choque de energia e alimentos. Ninguém sabe o que vai acontecer. Mas sabemos que isto parece ser um desastre.

É natural buscar alguém para acusar. Para muitos, o culpado é a expansão da Otan para o centro e o leste da Europa. Uma voz importante é a de John Mearsheimer, o renomado estudioso "realista", que culpa a decisão dos EUA de abrir a possibilidade de afiliação da Ucrânia à Otan em 2008. Eu concordo e discordo.

Pessoas passam pelo mural "Para Ucrânia com amor", feito pelos artistas Corie Mattie and Juliano Trindade em Los Angeles, nos Estados Unidos - Mario Tama-14.mar.22/AFP

O erro foi a ambiguidade. A oferta só deveria ter sido feita quando a Ucrânia aderisse como membro pleno. Mas eu apoiei a expansão da Otan aos antigos satélites da Rússia porque boas cercas fazem bons vizinhos. A Rússia sabe que se invadir um membro da Otan haverá guerra. Não foi o caso na Ucrânia. Por isso esse ataque pareceu uma opção fácil para o déspota do Kremlin.

Quanto a por que Vladimir Putin fez isso, uma resposta é que ele dirige um regime falido. Só um império pode justificar seu governo. A economia russa, dependente de matérias-primas, caiu muito atrás da da Polônia. É um paraíso de rentistas. Hoje, esses rentistas são os capangas de Putin e os "oligarcas" da era de Boris Yeltsin. A Ucrânia faliu economicamente, também. Mas é democrática. Para Putin, essa aspiração é intolerável.

Depois da queda da União Soviética, muitos esperavam um mundo conduzido por cooperação e intercâmbios mutuamente benéficos. Mas o grande conflito de poder sempre esteve à espera para irromper. Os Estados Unidos estavam inebriados por seu "momento unipolar". A China se tornou mais poderosa e autoritária sob Xi Jinping. Putin remoía seus ressentimentos, finalmente invadindo um país do qual se considera dono. Ouvimos ecos da Primeira Guerra Mundial. Então foi a Áustria, o parceiro mais fraco, e não a Alemanha, que começou o conflito. Hoje é a Rússia, o parceiro mais fraco em sua aliança com a China.

O apoio prometido pela China corre o risco de transformar os perigos criados pela guerra da Rússia em uma catástrofe. Isso transformaria o mundo em dois blocos, com custosas consequências econômicas e de segurança. Mas um Ocidente mobilizado ainda é muito mais forte. O impacto das sanções ocidentais demonstra isso. Um Ocidente unificado diminui a Rússia em todas as medidas, exceto em pessoal militar e ogivas nucleares. Mesmo com o acréscimo da China, o Ocidente é significativamente mais poderoso, exceto em números. No entanto, um choque duradouro entre o Ocidente e um bloco autoritário de Rússia e China deve ser evitado, se for possível. Seria extremamente perigoso.

Hoje, então, vemos um mundo em transformação. Considere os desafios à frente.

Mais obviamente, precisa ter fim a guerra na Ucrânia, que é um ataque simultaneamente a um país pacífico, a uma democracia e à ordem mundial. A China deveria ajudar a Rússia a se livrar de seu pesadelo. Não é difícil entender por que ela apoia Putin. Entre outras coisas, seus líderes certamente compartilham o desprezo dele pelas democracias. Mas esses são erros enormes. Como a história muitas vezes demonstrou, as sociedades livres são poderosas, quando mobilizadas, porque gozam do apoio de suas populações.

Também é essencial administrar a crise econômica que se aproxima. A combinação de guerra, choques de abastecimento e alta inflação é desestabilizadora, como o mundo aprendeu nos anos 1970. A instabilidade financeira hoje parece muito provável, também. As autoridades monetárias não podem ignorar a inflação alta, porém. Por isso os governos terão de empregar apoio fiscal direcionado aos vulneráveis.

Além disso, o Ocidente deve reforçar suas defesas, em todas as frentes –militar, energética, cibernética e econômica. É inevitável, infelizmente, que em um conflito com enormes ramificações as exigências de segurança venham em primeiro lugar. Esse não é o mundo que qualquer pessoa sã deseja. Mas é onde vivemos hoje. É vital que a União Europeia se torne uma verdadeira potência de segurança. Ela possui confortavelmente a escala demográfica e econômica para equilibrar a Rússia. O Reino Unido pós-brexit deve participar o mais plenamente possível. Os Estados Unidos precisam dessa assistência europeia, já que também estarão lidando com a preocupante China de Xi.

Apesar dessas necessidades prementes, devemos tentar não abandonar tudo o que foi conquistado nas últimas três décadas. Não estamos em guerra com russos e chineses comuns que simplesmente esperam um futuro melhor. Pelo contrário, em longo prazo eles poderão ser nossos aliados. As sanções precisam ser direcionadas até onde for possível. O futuro do comércio e outros intercâmbios pacíficos dependerão, entretanto, de como –e depois de quanto tempo– essa crise vai terminar.

Precisamos nos lembrar das preocupações mais amplas que todos os seres humanos compartilham –o meio ambiente global, a administração da pandemia, o desenvolvimento econômico e a própria paz. Não podemos sobreviver sem cooperação. Se a loucura de Putin prova alguma coisa é isso. O mundo do "poder está certo" não é um mundo em que podemos viver em segurança. Como mostram suas ameaças nucleares.

Depois da batalha de Austerlitz em 1805, William Pitt o Jovem disse, de modo presciente: "Enrolem o mapa [da Europa]; ele não será necessário nestes dez anos". A guerra da Rússia à Ucrânia transformou de modo semelhante o mapa de nosso mundo. Um período prolongado de estagflação parece certo, com grandes efeitos potenciais para os mercados financeiros. Em longo prazo, o surgimento de dois blocos com diferenças profundas entre si é provável, assim como uma reversão acelerada da globalização e o sacrifício dos interesses econômicos à geopolítica. Até a guerra nuclear é, infelizmente, concebível.

Rezem por um milagre em Moscou. Sem ele, a estrada à frente será longa e dura.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.