Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times Guerra na Ucrânia Rússia

Com guerra na Ucrânia, Putin reacende conflito entre tirania e democracia liberal

Uma guerra opcional contra os filhos de uma democracia pacífica não é um ato que podemos nos permitir esquecer

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Ninguém sabe como isso vai terminar. Mas sabemos como começou. Vladimir Putin armou um ataque não provocado a um país inocente. Ele cometeu o pior ato de agressão em solo europeu desde 1945 e justificou seu ato vil com mentiras vergonhosas. E, por enquanto, também uniu o Ocidente contra si. Putin não é o primeiro tirano a confundir um desejo de paz com covardia. Em vez disso, ele despertou a ira das populações ocidentais. O resultado é uma série de sanções à Rússia, tão impressionantes quanto justificadas.

Putin em reunião com líder de grupo de Industriais e Empreendedores da Rússia - Mikhail Klimentyev - 2.mar.2022/Sputnik/AFP

Putin pode ser o homem mais perigoso que já viveu. Ele está decidido a restaurar o império russo perdido, indiferente ao destino de seu próprio povo e, principalmente, dono de uma vasta força nuclear. Mas a resistência, embora arriscada, é imperativa. Alguns vão insistir que os atos de Putin são culpa do Ocidente e, acima de tudo, a consequência de sua decisão de ampliar a Otan. A verdade é o contrário. Putin nos lembrou por que os países que conheciam melhor o regime russo estavam desesperados pela expansão da Otan. Ele também demonstrou por que isso era necessário. A Europa precisava de uma fronteira defendida entre a Rússia e suas antigas possessões. A tragédia da Ucrânia é estar no lado errado daquela linha. Ela não representava uma ameaça à Rússia, além de querer ser livre; a Rússia representava uma ameaça a ela.

As sanções muitas vezes são ineficazes. As impostas desta vez não serão. Os Estados Unidos impuseram sanções à dívida soberana no mercado secundário em 22 de fevereiro. A Alemanha suspendeu a certificação do polêmico gasoduto Nord Stream 2 no mesmo dia. Em 24 de fevereiro, os EUA, a UE e outros membros do G7 limitaram a capacidade da Rússia de fazer transações em moeda estrangeira. E dois dias depois vários bancos russos foram removidos da rede de pagamentos Swift, um congelamento foi imposto aos ativos do Banco da Rússia e as transações com o banco central foram proibidas.

Uma análise mais ampla do Instituto de Finanças Internacionais resume assim: "Esperamos que as sanções impostas nos últimos dias tenham um efeito dramático no sistema financeiro da Rússia, assim como no país como um todo". Uma grande parcela das reservas líquidas de US$ 630 bilhões (R$ 3,2 trilhões) do país se tornará inútil. O banco central já teve de duplicar as taxas de juros. Há corrida aos bancos. Com exceção da energia, a economia será substancialmente isolada.

A dor não recairá só sobre a Rússia. Os preços do petróleo e do gás ficarão altos por mais tempo, exacerbando a pressão inflacionária global. Os preços dos alimentos também subirão. Se a Rússia cortar suas exportações de energia (com grande custo para si mesma), a disrupção será ainda mais severa. O gás natural russo gera 9% da energia bruta disponível na zona do euro e na UE como um todo. Mas o inverno, a estação de maior procura, está finalmente terminando.

Além desses efeitos relativamente específicos, a combinação de guerra, ameaças nucleares e sanções econômicas aumenta enormemente a incerteza. Os bancos centrais acharão ainda mais difícil decidir como endurecer a política monetária. O mesmo valerá para governos que tentam amortecer o golpe dos choques de energia.

Em longo prazo, as consequências econômicas seguirão a geopolítica. Se o resultado for uma divisão profunda e prolongada entre o Ocidente e um bloco centrado na China e na Rússia, haverá divisões econômicas. Todo mundo tentará reduzir sua dependência de parceiros contenciosos e inconfiáveis. A política vence a economia nesse mundo. Em nível global, a economia seria reconfigurada. Mas em tempos de guerra a política sempre supera a economia. Ainda não sabemos como.

A Europa certamente mudará mais. Um passo enorme foi dado pela Alemanha, com seu reconhecimento de que sua posição pós-Guerra Fria hoje é insustentável. Ela precisa se tornar o centro de uma estrutura poderosa de segurança europeia capaz de se proteger contra uma Rússia revanchista. Isso deve incluir um enorme esforço para reduzir a dependência energética. Tragicamente, a Europa precisa reconhecer que os EUA não serão um aliado confiável enquanto Donald Trump, que considera Putin um "gênio", comandar o Partido Republicano. O Reino Unido, por sua vez, tem de reconhecer que será sempre uma potência europeia. Ele deve se comprometer mais profundamente com a defesa do continente, principalmente de seus aliados na Europa oriental. Tudo isso vai exigir decisão e dinheiro.

Nesse novo mundo, a posição da China será uma preocupação central. Sua liderança precisa entender que apoiar a Rússia hoje é incompatível com as relações amigáveis com os países ocidentais. Pelo contrário, estes últimos terão de fazer da segurança estratégica um imperativo predominante de sua política econômica. Se a China decidir confiar em um novo eixo de nacionalistas autoritários contra o Ocidente, a divisão econômica global deverá se seguir. As empresas precisam tomar nota disso.

Uma guerra opcional contra os filhos de uma democracia pacífica não é um ato que nós no Ocidente podemos nos permitir esquecer. Tampouco podemos perdoar os que a começaram ou os que a apoiam. As memórias de nosso passado devem proibir isso. Estamos em um novo conflito ideológico, não entre comunistas e capitalistas, mas entre a tirania nacionalista e a democracia liberal. De muitas maneiras, este será mais perigoso que a Guerra Fria. Putin detém um poder arbitrário e inconteste. Enquanto ele estiver no Kremlin, o mundo será perigoso. Não está claro se o mesmo vale para Xi Jinping da China. Mas ainda poderemos saber que sim.

Este não é um conflito com a população russa. Ainda devemos esperar para eles um regime político digno de sua contribuição à nossa civilização. É um conflito com seu regime. A Rússia surgiu como um pária governado por um bandido. Não podemos viver em paz e segurança com tal vizinho. Essa invasão não deve durar, já que seu sucesso ameaçaria a todos nós. Estamos em um novo mundo. Devemos entender isso e agir adequadamente.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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