Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times Rússia União Europeia

O Ocidente deve reconhecer sua hipocrisia

Muitos países veem EUA e potências europeias como egoístas, presunçosos e insinceros

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Entramos numa era de competição global temperada pela necessidade de cooperar e pelo medo do conflito. Os protagonistas são os Estados Unidos e seus aliados, por um lado, e a China e a Rússia, por outro. No entanto, o resto do mundo também importa. Ele contém dois terços da população global e várias potências em ascensão, principalmente a Índia, hoje o país mais populoso do mundo.

No entanto, as relações entre os EUA e a China são claramente centrais. Felizmente, o governo americano vem tentando reduzir o atrito, mais recentemente com visitas a Pequim do secretário de Estado, Antony Blinken, e da secretária do Tesouro, Janet Yellen.

No Financial Times, com ilustração do Ocidente diminuído, 'G7 deve aceitar que não pode governar o mundo' e 'A hegemonia americana e o domínio econômico do grupo agora são passado'
No Financial Times, com ilustração do Ocidente diminuído, 'G7 deve aceitar que não pode governar o mundo' e 'A hegemonia americana e o domínio econômico do grupo agora são passado' - Reprodução

O objetivo de Yellen foi, segundo ela afirmou, "estabelecer e aprofundar relacionamentos" com a nova equipe de liderança econômica em Pequim. Ela enfatizou que isso fazia parte de um esforço para estabilizar o relacionamento, reduzir o risco de mal-entendidos e considerar áreas de cooperação. Acrescentou que "há uma distinção importante entre dissociar, por um lado, e, por outro, diversificar cadeias de suprimentos críticas ou tomar medidas visando a segurança nacional. Sabemos que uma dissociação das duas maiores economias do mundo seria desastrosa para ambos os países e desestabilizadora para o mundo. E seria praticamente impossível de realizar".

É preciso aplaudir esse esforço para esclarecer objetivos, melhorar a transparência e aprofundar as relações. Não devemos tropeçar em hostilidades com a China como fizemos com a Rússia. Melhor ainda, precisamos fazer com que esse relacionamento funcione no interesse do mundo. No entanto, as preocupações do Ocidente não devem se limitar às relações com a China. Melhores relações com o resto do mundo também são importantes. Isso exige que o Ocidente reconheça seus próprios critérios ambíguos e sua hipocrisia.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi uma terrível violação dos princípios morais e legais fundamentais. Muitos nos países em desenvolvimento também reconhecem isso. Mas eles também se lembram da longa história dos países ocidentais como imperialistas e invasores. Também não deixam de perceber que nos preocupamos muito mais com os colegas europeus do que com os outros. Com frequência demais, vimos graves violações dos direitos humanos e do direito internacional. Com frequência demais, consideramos tais injustiças como não sendo da nossa conta. Muitos acham que a Ucrânia não é seu problema.

Depois, há o comércio. Em um importante discurso proferido em abril, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, repudiou a ordem comercial que seu país levou décadas para construir. Mais recentemente, a representante comercial dos EUA, Katherine Tai, a enterrou. Seu discurso levanta muitas questões. No entanto, o que não pode ser ignorado é o próprio fato da reversão. Muitos nos países em desenvolvimento aderiram à doutrina da abertura comercial. Muitos deles prosperaram como resultado. Agora eles temem ser deixados de lado.

Outra questão importante é a assistência internacional. Os países em desenvolvimento foram atingidos por uma série de choques pelos quais não foram responsáveis: a Covid, o subsequente aumento acentuado da inflação, a invasão da Ucrânia, o salto nos preços da energia e dos alimentos e, em seguida, as taxas de juros mais altas. A assistência que receberam durante essa era de choques foi totalmente inadequada. O legado da Covid para os jovens, junto com o excesso de dívidas, pode até criar décadas perdidas.

Essa questão da ajuda ao desenvolvimento está ligada ao desafio do clima. Como todos nos países em desenvolvimento sabem, a razão pela qual o problema climático é urgente hoje são as emissões históricas dos países de alta renda. Os últimos foram capazes de usar a atmosfera como um ralo, enquanto os países em desenvolvimento de hoje não podem. Hoje, dizemos a eles que devem seguir um caminho de desenvolvimento muito diferente do nosso. É desnecessário dizer que isso é enfurecedor. No entanto, agora as emissões devem ser drasticamente reduzidas. Isso requer um esforço global, inclusive em muitos países emergentes e em desenvolvimento. Fizemos progressos nesta tarefa, na realidade e não retoricamente? A resposta é "não". As emissões não diminuíram nada.

Se as emissões devem diminuir rapidamente, enquanto os países emergentes e em desenvolvimento ainda entregam a prosperidade que suas populações exigem, deve haver um grande fluxo de recursos para eles, inclusive para financiar a mitigação climática e a necessária adaptação a temperaturas mais altas. Em 2021, as transferências líquidas de empréstimos oficiais para países emergentes e em desenvolvimento foram de apenas US$ 38 bilhões. As doações foram maiores, mas com foco mais restrito.

Isso não chega perto de suficiente. Deve haver mais ajuda, alívio da dívida, apoio a investimentos relacionados ao clima e novos mecanismos para gerar os recursos necessários, como a proposta de que os países com emissões per capita acima da média compensem aqueles com emissões abaixo da média. Aumentos de capital para bancos multilaterais também são vitais.

As democracias de alta renda não estão oferecendo ajuda adequada nessa tarefa de longo prazo, como fizeram com a Covid. No caso do clima, deixam de perceber nossa responsabilidade em administrar um problema que os pobres do mundo não criaram. Isso parece injusto, apenas porque evidentemente é.

Estamos numa competição de sistemas. Espero que a democracia e a liberdade individual finalmente vençam. Em longo prazo, elas têm uma boa chance. No entanto, devemos lembrar também das ameaças que enfrentamos hoje à paz, à prosperidade e ao planeta. Lidar com estas exigirá um envolvimento profundo com a China. Mas se o Ocidente deseja ter a influência que espera deve perceber que suas reivindicações de superioridade moral não são incontestáveis nem incontestes. Muitos em nosso mundo veem as potências ocidentais como egoístas, presunçosas e hipócritas. Eles não estão totalmente errados. Devemos fazer muito melhor.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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