Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Descrição de chapéu Rússia União Europeia

Acordo militar com a Austrália fragiliza promessa de Biden de unir Ocidente

Se Afeganistão concerne história dos últimos 20 anos, Camberra é tema para os próximos 30

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O acordo militar com a Austrália era um dos ativos mais sólidos da indústria francesa e a principal bandeira da diplomacia militar liderada, desde o governo François Hollande, pelo ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian.

A produção de 12 submarinos de tipo Attack por mais de € 50 bilhões (R$ 310 bilhões) asseguraria milhares de empregos na Normandia, uma das regiões francesas mais atingidas pela desindustrialização, a competitividade internacional da tecnologia militar europeia no pós-brexit, e a projeção política da França na sua última fronteira global, o Indo-Pacífico, onde ainda controla a Nova Caledônia, a Ilha da Reunião e o arquipélago de Mayotte.

O presidente dos EUA, Joe Biden, participa de reunião virtual na Casa Branca, em Washington
O presidente dos EUA, Joe Biden, participa de reunião virtual na Casa Branca, em Washington - Jonathan Ernst - 17.set.21/Reuters

Essa pedra basilar do Estado francês e da Europa foi derrubada pelos EUA e pelo Reino Unido, seus dois principais aliados estratégicos, que levaram a Austrália a abandonar o compromisso firmado com a França em troca de uma nova aliança batizada de Aukus.

A velocidade e a brutalidade das negociações, que rompem com todas as convenções diplomáticas, enfureceu Paris. Le Drian falou em “golpe pelas costas” e convocou seus embaixadores em Camberra e Washington.

A crise de Camberra é, primeiro, um efeito colateral da crise de Cabul. O governo Biden precisava correr para virar a página da retirada humilhante do Afeganistão e iniciar o novo ciclo militar com foco na China.

O suave e francófilo chefe da diplomacia do governo Biden, Anthony Blinken, parece ter sido atropelado por rivais internos realistas e indiferentes à credibilidade americana junto aos europeus.

Na competição ocidental com a China, o lugar da Austrália importa além da geografia. Camberra está saindo de uma década de ilusões perdidas. O país se enriqueceu com a venda de minérios para a China, mas Pequim ampliou sua influência na política, imprensa e negócios locais, a ponto de a Austrália virar o exemplo mais óbvio da ameaça da ascensão chinesa para as democracias liberais.

Nesse contexto, Camberra cedeu porque a proposta dos EUA era irrecusável: ela abre caminho para uma modernização tecnológica e posiciona a Austrália na linha da frente da oposição ao expansionismo chinês. Vale acrescentar que a transferência de tecnologia nuclear para submarinos proposta pelos americanos jamais poderia ser coberta pela França. Durante meio século, Paris tratou o Oceano Pacífico como o seu aterro, contaminando mais de 100 mil pessoas em testes nucleares.

Se o Afeganistão concerne a história dos últimos 20 anos, Camberra é um tema para os próximos 30.

Depois da traição americana, a França, que tentou traçar a sua própria estratégia militar, agindo individualmente em regiões pós-imperiais como a África Ocidental e o próprio Indo-Pacífico, parece condenada a abandonar a Otan e a formar uma força de defesa europeia.

A crise de Camberra também mostra que a promessa de Biden de voltar a unir os países ocidentais sob a bandeira americana não ia além de uma fantasia do passado. Para os europeus, seu primeiro ano no poder tem sido mais atribulado do que os quatro anos de governo Trump.

Com as cúpulas da Otan e da COP nas próximas semanas, o mundo pode assistir, até ao final do ano, à desagregação definitiva do bloco militar ocidental.

Erramos: o texto foi alterado

O presidente da França, Emmanuel Macron, convocou os embaixadores do país em Washington e Camberra, não em Washington e Londres. 

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