Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mônica Bergamo

'Ainda vale a pena viver', diz Ângela Leal, extasiada após quarentena com a filha, Leandra

Depois de duas décadas em casas diferentes, mãe e filha decidiram dividir o teto para atravessar a epidemia, e o reencontro trouxe novo oxigênio para encararem a vida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Retrato das atrizes Ângela e Leandra Leal durante quarentena em Búzios, no Rio de Janeiro Guilherme Burgos/Divulgação

Ângela, 73, e Leandra Leal, 37, dividem o fazer artístico, a inclinação política à esquerda e, pela primeira vez em quase duas décadas, desde que Leandra saiu de casa, o teto. Nesta quarentena, mãe e filha se recolheram em uma casa em Búzios, no Rio, para atravessar juntas alguns dos meses de um ano atípico.

Ao longo de seis semanas, ​Ângela e Leandra deram vida aos personagens Estragon e Vladimir, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, em uma adaptação do clássico “Esperando Godot”, dos anos 1950.

Em parceria com seu companheiro, o diretor e fotógrafo Guilherme Burgos, Leandra manejou roteiro, fotografia, iluminação e o que mais foi necessário para o filme “Nada a Fazer”. As diárias eram partilhadas com as aulas online de Júlia, filha de Leandra, hoje com 6 anos de idade, tarefas domésticas e momentos de lazer entre a família.

Para além do filme, em etapa de captação de apoio financeiro para sua finalização, Ângela e Leandra se ocupam procurando novas formas de manter aberto o Teatro Rival Refit, criado em 1934 e pertencente à família desde a década de 1970. Seu palco revelou nomes como o de Mart’Nália e Zeca Pagodinho. “Ele está parado, sem receita. A Refit patrocina o show. Mas se não tem show, como é que faz?”, indaga Ângela.

Nesta conversa com a coluna, as atrizes falam, entre consensos e divergências, sobre retornar às próprias raízes, de redescobertas advindas da experiência e da insatisfação com o comando do país.

*

Retrato das atrizes Ângela e Leandra Leal - Guilherme Burgos/Divulgação

QUARENTENA

Ângela: Meu médico me aconselhou a sair do Rio. Eu sou uma pessoa de alto risco, já tive câncer, infarto, enfisema.

Leandra: Eu estava gravando [a série] “Aruanas”, em São Paulo. Fiquei um tempo sem saber o que fazer, se “Aruanas” voltaria. Quando entendi que esse tempo seria mais longo, fiquei 15 dias sem botar o pé na rua, fiz exames e vim para Búzios.

Ângela: Quando ela chegou, eu não sabia bem o que ela queria filmar. Achava que era coisa caseira. No que o noivo dela e a pequena Júlia chegam com equipamento de filmagem todo completo, eu digo: “Um celular não bastava?”.

Leandra: A minha existência e a minha saúde são muito ligadas ao meu trabalho. Eu sou uma pessoa que consegue elaborar a vida através da arte. Quando minha mãe ficou doente, doeram várias coisas em mim, mas ao mesmo tempo eu queria muito ter alguma ferramenta para eternizar essa relação, que passa pela arte.

REENCONTRO

Ângela: Eu te confesso que nos primeiros dias foi uma mãe fazendo a vontade da filha. Eu já tinha dito que não queria mais atuar. Não é mais a minha, não estou pronta fisicamente para atuar como eu gostaria. Sempre fui muito exigente com movimento. Com o tempo, com a entrega e com o trabalho que eu estava vendo, eu embarquei. E aí a atriz pulsou.

Leandra: Isso foi lindo de ver.

Ângela: A atriz falou mais forte. Ela —diz, olhando para Leandra e pegando em suas mãos— me trouxe muito um lugar pelo qual eu sou apaixonada. Eu penso que na outra geração eu vou ter que renascer atriz de novo para descontar isso que eu estou deixando para trás. Hoje eu acho que fiquei devendo a mim.

Leandra e Ângela Leal contracenam no filme "Nada a Fazer", baseado na peça "Esperando Godot", produzido por elas durante a quarentena - Divulgação

CORTINAS

Ângela: O Rival tem 86 anos, já sobreviveu a diversas outras crises. Ele é um resistente.

Leandra: Tudo o que é eterno, se transforma, e o Rival se transforma. Agora, a gente está num ambiente online tentando sobreviver. Tomamos todas as medidas possíveis para manter os funcionários ali e estamos o transformando em um espaço para artistas que queiram fazer lives. O patrocínio, que iria até setembro, está em negociação.

Ângela: Ele é pequeno em espaço, mas muito grande para o Rio de Janeiro, para a afirmação da ‘carioquice’. É um teatro absolutamente democrático, ele dá oportunidades a todos. Foi o primeiro palco da Mart’nália e do Zeca [Pagodinho], que fez quatro ou cinco shows e depois não pôde fazer mais, porque as pessoas se batiam na porta para entrar.

PASSADO E PRESENTE

Leandra: Uma coisa que resume bem a situação do Rival é que a gente teve o patrocínio da Petrobras durante 19 anos. Ele foi aprovado no governo FHC e foi tirado no governo Bolsonaro. A gente passou por todos os governos, PSDB, PT e MDB, com esse patrocínio.

Ângela: E não dá pra chamar de petralha, porque quem deu foi o Fernando Henrique.

Leandra: O governo atual deixa de abraçar qualquer coisa. Ele só abraça os filhos e as pessoas que estão em manifestação a favor.

FILHA DE PEIXE

Ângela: O grêmio da Escola Parque foi a Leandra que fundou. Foi a primeira vez que eu disse: “Ih, ela tem o bichinho da política” [risos].

Leandra: Foi num momento logo depois dos caras-pintadas. Eu era muito nova, tinha dez anos, mas fiquei ali naquela coisa. Minha mãe, por exemplo, é brizolista.

Ângela: Precisa dedurar?

Leandra: Não, eu acho o [ex-governador Leonel] Brizola incrível. Como assim a gente não tem uma avenida Leonel Brizola no Rio de Janeiro?

Ângela: Não fala assim que eu choro [risos].

Leandra: Eu lembro que em 1989 minha mãe fez campanha para o Brizola e eu meti na cabeça que eu ia votar no Lula [risos]. Eu peguei santinhos e distribuí no prédio. Eu, com 7 anos, fazendo campanha com mais duas amigas de infância.

Retrato das atrizes Ângela e Leandra Leal durante quarentena em Búzios, no Rio de Janeiro - Guilherme Burgos/Divulgação

TODO DIA

Ângela: Quando a filha não mora mais na casa dos pais, a relação se torna muito meteórica. “Oi, mãe! Tá bem? Tô bem também! Beijo”.

Leandra: A gente não ficava tanto tempo juntas desde os meus 18 anos, quando saí de casa. A gente faz viagens, mas isso aqui é outro tempo. E a gente passou bem, só teve desavenças normais.

Ângela: Pequeníssimas, pelo amor de Deus! Eu não ria como eu ri havia anos. O prazer de rir, de gargalhar, a gente teve isso. E é também o que mexe mais com a gente, porque a gente sabe o quanto as pessoas não estão bem aí fora.

AMANHÃ, NINGUÉM SABE

Leandra: Eu era uma pessoa que lia astrologia todo dia, nem isso eu leio mais. Eu não quero que ninguém me prometa nada, eu só quero o hoje. O mundo inteiro está vivendo essa pandemia, mas nós escolhemos viver da pior maneira.

Ângela: Não me mete nisso. Escolheram pela gente.

Leandra: Não é só a pandemia. É o desmatamento, é o genocídio dos índios. Essa coisa de “vamos sair melhores dessa pandemia”... Olha pros bares, olha como as pessoas estão. Ninguém estava em casa porque achava que era o melhor. Era o medo de uma multa, de ser linchado na internet.

Ângela: Não é possível um mundo ser habitado por pessoas que se destroem, que só olham para si ou então para o raio de um metro a sua frente. Isso me dói muito.

QUE NÃO DEVE SER DITO

Ângela: O cara não é burro, o cara é muito inteligente.

Leandra: Quem?

Ângela: Eu não vou falar o nome.

Leandra: Eu não acho ele inteligente.

Ângela: Não acha?! Ele fez 50 milhões caírem no papo dele, cara! Dizendo que era a favor de tortura, elevando o nome do [coronel Brilhante] Ustra.

Leandra: Eu acho que é um surto coletivo de 50 milhões de pessoas [risos].

Ângela: Quem dera! Eu enfiei na minha cabeça que estava assistindo a uma novela com péssimos atores e com péssimo roteiro. Foi assim até que começaram a morrer pessoas, aí eu vi que não adianta fingir. As pessoas estão expostas a um perigo enlouquecedor.

PARA TODOS

Ângela: É um prazer ver aquela população jovem, em grande parte negra, nas ruas dos Estados Unidos indo lutar por uma causa. Acho o máximo. É o jovem que pode mudar o mundo.

Leandra: Ah, não, mãe, não vamos entrar nesse discurso de que os jovens podem mudar o mundo. Eu acho que a juventude tem um frescor e uma coragem...

Ângela: ... E uma saúde...

Leandra: Mas cabe a todos mudar o mundo. Como é que a gente consegue mudar o mundo sem ocupar os cargos de poder? Pessoas mais velhas precisam ser incluídas no processo democrático.

Ângela: O jovem tem a vida pela frente. Uma pessoa de 78 anos pode ter vigor, mas não tem a vida pela frente. É só por isso. Eu acho legal que ela [Leandra] tem a cabeça do jovem.

DUO

Ângela: A convivência com ela, ver a vontade dela, trouxe uma frase que está perseguindo muito a minha cabecinha: ainda vale a pena viver. Eu vi a minha neta nascendo para o mundo. Acho que tudo isso me trouxe oxigênio e me trouxe o que era necessário para eu encarar mais uns anos de vida. Vou te dizer: antes dela chegar, eu estava de saco cheio. Quando o Flávio [Migliaccio] se suicidou, eu entendi o suicídio dele. Eu entendi. Não restava nada a fazer.

Leandra: Para mim, reafirmou o amor, o afeto e a confiança. É uma dinâmica nova de relação a gente se ver nesse lugar, de se divertir juntas, da minha mãe confiar nas ideias que eu tive e se jogar nisso. É um sentimento de agradecimento e honra pelas minhas origens.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.