Quando começou a fazer lives ao domingos, em abril deste ano, Simone Bittencourt pensou que a aventura não superaria a marca de três apresentações. Um pequeno erro de cálculo, talvez, para quem chega ao final de novembro de 2020 em vias do 33º concerto virtual.
Conhecida como Cigarra por causa de canção e disco homônimos, de 1978, ela confessa carregar uma voz cansada após oito meses na empreitada. E tanto canta não por ser verão, como na fábula de Esopo, mas porque é tempo de pandemia. “Enquanto tiver isso, é isso o que será”, afirma.
Se há quem faça piadas sobre temer “uma segunda onda de lives” em meio a um provável repique da Covid-19, a cantora desconhece o intervalo entre o primeiro e o segundo momento. “Estou cansada há oito meses porque não dá tempo de descansar.” A única exceção, conta, foi no dia 15 de novembro, por causa das eleições municipais. “Totalmente compreensível e cívico”, explica.
“Fazer um show, que era o que eu estava acostumada, durante um ano significa cantar um repertório, com uma mudança ou outra. Mas o que eu me propus a fazer é toda semana ter coisas novas. Isso demanda tempo.” As lives exigiram, por exemplo, um levantamento de quase cinco décadas de discografia produzida por ela.
“É um trabalho que eu só tenho folga às segundas. Claro que estou bastante cansada, mas, ao mesmo tempo, tenho um prazer enorme de fazer essas lives e estar seguindo à risca os bailes da vida.”
Simone conversa com a coluna por videoconferência da sacada de seu apartamento, com vista para a praia de São Conrado, no Rio. Recém-inserida no mundo digital após fazer as pazes com a tecnologia, ela empenha algum esforço para driblar mensagens de falta de bateria que aparecem na tela de seu celular. “Ele não está me dando a menor bola, ele é mais rápido do que eu”, diz, como quem parece se divertir com o próprio embaraço.
“Eu tinha um celular bem antigo. Celular, pra mim, é pra falar, não tem essa coisa de passar email, passar WhatsApp”, conta ela, que foi convencida a adquirir um smartphone.
Mas não há o que contorne o estranhamento de não ter um público de carne e osso a sua frente. “Tento colocar na minha cabeça que estou falando para um monte de gente que está me vendo. Eu não fico apegada a uma maquininha.”
Do alto de seus 47 anos de carreira, ela afirma que o nervosismo para se apresentar é o mesmo do início. “É uma coisa que me atrapalha muito. Me dá um apagão das letras.”
“A primeira vez que eu me apresentei num show, no aniversário de carreira de um cantor brasileiro chamado Altemar Dutra, eu fiz xixi. A sorte é que eu estava de saia comprida”, relembra. “É coração e cabeça. Isso sempre foi, qualquer situação, seja cantando para três ou 20 pessoas. A música mexe comigo e continua mexendo como se nenhum minuto tivesse passado da minha primeira vez.”
Na voz de Simone, ficaram conhecidos sucessos e versões como “Começar de Novo”, “Então É Natal”, “O Que Será (A Flor da Pele)” e “Iolanda”, além de trilhas de novelas, como a canção de abertura de “Malu Mulher”, exibida pela TV Globo em 1979.
A música “Cigarra”, que virou também seu apelido, foi um presente de Milton Nascimento, a pedido dela. “A primeira vez que eu vi o Milton ao vivo foi aí em São Paulo. Eu lembro que ele abria a camisa dele, ficava com o peito nu. Vinha do céu aquele vozeirão.”
Os dois viriam a ser apresentados anos depois, quando Simone já era contratada da gravadora Odeon. “O meu horário era o da tarde, e Bituca [apelido de Milton] tinha o horário da noite. Eu estava terminando de cantar uma música e ele chegou. Eu o vi através do aquário. Ali, eu já me tremi inteira”, afirma.
“Minha geração foi de uma braveza maravilhosa. Eu levei muita porrada de cassetete, não tinha nenhum medo. A gente venceu a ditadura! A geração da gente é vitoriosa porque mostrou a cara, levou porrada”, diz. “E ainda leva até hoje. A pessoa agredir a Alcione, chamar o Martinho da Vila de vagabundo, isso não é uma agressão?”
“Hoje, todos os setentões são pessoas vitoriosas. A geração da gente viveu esse mundo louco do muro de Berlim, do homem à Lua. É uma geração riquíssima de vivências e de informações, de coisas lindas e de coisas terríveis”, segue.
Simone se orgulha de ter sentado à mesa com nomes como o produtor Quincy Jones, o jornalista Gay Talese e o figurão da pop art Andy Warhol. Sobre este último, ela revela um arrependimento: “Nós jantamos lá em Nova York uma vez e ele estava fazendo a capa do disco do [cantor] Miguel Bosé. E foi uma engolida de mosca eu não ter feito a capa do meu disco com ele.”
Embora exalte seus contemporâneos, a cantora não faz pouco caso da nova leva de artistas brasileiros. “Sou otimista com relação aos jovens, gente que bota a cara, que não tem medo. Errou? Não tem importância. Vai, uma hora acerta. Mas pelo menos você está tentando acertar, tentando fazer uma coisa legal para o mundo.”
“Cada geração tem a sua maneira de cantar e de escrever”, diz. “Teve uma época em que as coisas que nós queríamos falar eram por entrelinhas.”
“Era tudo muito genial. O Caetano escrevia um poema e, na hora de cantar, fazia diferente, senão a censura não deixava passar”, afirma, e começa a cantarolar para provar seu ponto: “Você traz a Coca-Cola, eu tomo / Você bota a mesa, eu como / Eu como, eu como, eu como, eu como /
Você”.
Mas o entusiasmo de Simone diminui quando o tema é a política institucional. “Eu não tenho mais credo”, crava. “Um país que não educa, que não acolhe e que não cuida dos seus filhos é muito questionável. Não interessa ensinar, não interessa preservar. Eu não sei qual é o nível de loucura desses caras. Garanto também que você não sabe.”
“Como você pode acreditar num país que gasta R$ 2 bilhões para um fundo eleitoral e não tem dinheiro para educação, saúde e cultura? Qual é o parâmetro que você chega nisso? Eles dão o pão e tiram o pão. Eles compram o respirador e roubam o respirador. Eles compram a merenda escolar e tiram a merenda da boca de uma criança.”
Ela não hesita em dizer que neste domingo (29) votará em Eduardo Paes, candidato do Democratas para a Prefeitura do Rio. “Vou votar no Eduardo Paes, mas em alto e bom som!”, diz, entusiasmada. “Eu escolhi o Rio pra morar acho que pelo mar, pela praia. Eu gosto do cheiro do mar. Mas aqui, o Rio de Janeiro, que dedo podre.”
Em 2016, Simone bateu panela e participou de atos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que acabou destituída em agosto daquele ano.
“Não posso ser conivente com o rombo da Petrobras, que perdeu bilhões de dólares”, diz. “Meu partido hoje é o coração partido, e eu nunca escondi. Acho que o Brasil foi muito apunhalado, sofreu muito, foi muito crédulo com o PT, achou que... Sei lá o que que achou. Mas eu não sou PT. Eu não sou PT, não sou Bolsonaro, eu não sou nada disso.”
Aos 70 anos de idade, Simone integra o grupo de risco da Covid-19 e diz temer um possível contágio, apesar do seu histórico de atleta. “Não quero moscar. Eu quero ficar por aqui ainda.”
Antes da música cair em seu colo, como gosta dizer, ela foi professora de educação física e dividiu apartamento e as quadras de basquete com nomes como Hortência, Norminha, Delcy, Magic Paula, Marlene e Janeth. “Sou de uma época em que o basquete deu visibilidade, depois do campeonato mundial em São Paulo, em 1971, para meninas que alçaram voos fantásticos.”
Para o futuro próximo, Cigarra diz ter em mente a realização de um livro e de um documentário autobiográficos. “Quem vai falar da minha vida serei eu”, se apressa em dizer.
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