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'Nosso fechamento é um pedido de socorro', diz cofundador da Casa de Francisca

Tradicional espaço de shows em São Paulo lança campanha de mantenedores e vaquinha como última esperança

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Casa de Francisca

Fachada do Palacete Teresa Toledo Lara, que abriga a Casa de Francisca, no centro de São Paulo Pedro N. Prata

A notícia de que a Casa de Francisca, tradicional espaço de shows em São Paulo, iria encerrar suas atividades após 15 anos gerou uma onda de mensagens de apoio de artistas e público nas redes sociais. E, com essa reação, acendeu uma esperança de que a decisão possa ser revertida.

“Vamos lançar uma campanha de mantenedores. Sempre acreditamos numa relação de continuidade com o artista e com o público”, diz Rubens Amatto, 41, cofundador e curador da casa. “Vamos reagir, vamos tentar.”

O “anúncio doído” foi feito no último domingo (21): “Vamos parar por tempo indeterminado e ainda sem saber se vamos conseguir voltar”, dizia trecho do post. “O nosso fechamento é um pedido de socorro”, segue Rubens. A casa é um querido ponto da cena cultural paulistana. Por lá já passaram nomes como Paulo Vanzolini, Jorge Mautner, Chico César, Metá Metá, Ná Ozzetti, Alaíde Costa e Tulipa Ruiz —para citar alguns.

Fundada em 2006 e autodefinida “a menor casa de shows da cidade”, começou em um pequeno imóvel na rua José Maria Lisboa, nos Jardins, com capacidade para 44 pessoas, e desde 2017 ocupa o histórico Palacete Tereza Toledo Lara, no centro, que comporta público de até 180 pessoas.

A ideia da campanha de mantenedores é criar uma espécie de assinatura em que pessoas e empresas possam colaborar mensalmente com a casa, com contrapartidas aos assinantes. Também será criada uma vaquinha para doações pontuais —elas serão lançadas neste domingo (28) nas redes sociais e no site do espaço.

​A decisão de fechar as portas foi motivada pela epidemia da Covid-19, que afeta o comércio e o setor cultural no Brasil e em SP já levou ao fechamento de endereços como o bar Genésio e o restaurante Marcel. O Ó do Borogodó, reduto do samba paulistano, chegou a anunciar que encerraria suas atividades —mas conseguiu arrecadar quase R$ 300 mil com uma vaquinha e reverter a decisão.

Rubens lamenta a falta de recursos públicos destinados ao setor.​ “A cultura tem uma potência gigantesca tanto em relação ao patrimônio imaterial, que é a riqueza cultural de um país, quanto economicamente”, diz. E avalia que, no pós-pandemia, serão necessárias fortes políticas públicas para sua recuperação. Caso contrário, a cidade vai “se tornar um cemitério”.

“É pesado falar em cemitério num momento com tantos mortos, né? Mas é um cemitério humano, um cemitério cultural. Além​ de toda essa tragédia com quantidade de mortes. Estão morrendo milhares de pessoas e milhares de projetos.”

Mas diz que essa enxurrada de mensagens de apoio o deixou “mais esperançoso”. “Fiquei surpreso não só pela quantidade, mas também porque deu para perceber que o projeto realmente toca as pessoas.”

Nascida do desejo de proporcionar encontros, a casa também serve como espécie de laboratório para que artistas explorem e testem novos repertórios e formatos. Por ali, surgiram projetos e grupos, como o Passo Torto, conta a cantora Juçara Marçal. “É um espaço onde a coragem, a ousadia, o amor e a liberdade nas escolhas são os principais ingredientes. Há um compromisso e um respeito integral com a arte e com os artistas”, diz ela. ​

Foi também no palco da casa que o rapper Criolo apresentou pela primeira vez músicas que estariam em seu disco “Nó na Orelha”, trabalho que o projetou —inclusive a canção “Não Existe Amor em SP”. “Os ensaios dos amigos antes de a casa abrir eram sempre uma aula de música que eu tinha. Sou muito grato”, segue o rapper. “Ela vem sendo, há quase duas décadas, um lugar de experimentação e provocação artístico-cultural ímpar em nosso território cada vez mais bárbaro.”

Criolo resgata a lembrança de uma foto em que aparece ao lado de Arrigo Barnabé e Paulo Vanzolini. O encontro dos três foi em ocasião da primeira edição da maratona musical El Grande Conserto (com “s” mesmo) realizada em 2012 no Teatro Oficina. Naquele momento, a casa passava por dificuldades financeiras por causa de uma reforma, que deixou o espaço parado por quase oito meses. Mais de 50 nomes da música brasileira se apresentaram —e doaram os cachês.

“A casa estava com uma dificuldade enorme, muito parecida com a que a gente está vivendo hoje. A partir daquele momento, ela foi se fortalecendo”, diz Rubens. Com média de 250 shows por ano, o espaço realizou mais de 3.500 apresentações, além de festivais independentes e projetos.

Antes da epidemia, diz, a casa vivia o seu “melhor momento”. “No sentido de ser um projeto forte culturalmente e de termos conseguido encontrar um caminho de independência financeira. E aí veio essa avalanche.” Ele afirma que teve que reduzir sua equipe: antes, eram 50 funcionários. Hoje, são cerca de 20. “O mais importante agora não é o quanto a gente deve. Mas o que pode ser feito.”

Como alternativas para continuar operando em 2020, a casa, que também tem restaurante e bar, passou a oferecer serviço de delivery e inaugurou o projeto Cine-Lives —transmissão de shows ao vivo, sem público, com direção de cineastas convidados. Com curadoria de Laís Bodanzky, foram realizadas 20 apresentações.

A notícia do fechamento foi recebida com lamento por artistas e frequentadores da casa —por lá, circulavam cerca de 8.000 pessoas por mês. O rapper Emicida conta que, ao tomar conhecimento da decisão, começou a chorar “pensando no valor de uma vida numa megalópole como SP, sem um lugar como a Francisca para respirarmos memória e esperança”.

“O Rubão conseguiu criar ali um templo da arte contemporânea que se encontra com os artistas de antes, na companhia da alma dos que já se foram e assim sonhamos o futuro. O fechamento é uma punhalada violenta no coração de todo aquele que tem esperança por aqui, sendo artista ou não”, diz.

“Estamos em luto”, afirma a cantora Monica Salmaso, outra frequentadora assídua da casa e que se colocou à disposição para ajudar no que for preciso. “A casa é mais ou menos um membro da família. É um milagre. Qualquer lugar que você olhar ali tem amor, capricho e cuidado”, segue.

O músico Arrigo Barnabé diz que a definição de se apresentar lá é ter “os ventos soprando a seu favor”. Conta que criticou a decisão do espaço migrar para o centro. “Quando o Rubens me contou, eu falei: ‘Você tá louco!’ [risos]. E disse que não ia dar certo. Só errei! ”

No triângulo formado pelas ruas Direita, Quintino Bocaiúva e José Bonifácio, o palacete foi, no século 20, sede de referências na música paulistana, como as casas de instrumentos e partituras Bevilacqua e Irmãos Vitale e a Rádio Record. “Comprei partituras e aluguei piano naquela loja”, diz Arrigo.

Rubens recorda primeira vez que entrou em contato com a família dona do imóvel. “A primeira frase que me falaram foi: ‘O nosso desejo é devolver o palacete para a cidade’. Não acreditei! Você não imagina que pode ter pessoas tão bem-intencionadas.”

E diz que, por ora, não vão entregar o imóvel. “Estamos em conversa para ver o que é possível fazer. Não vamos entregar até o último momento”, segue. ​“Sempre sonhei que a casa é um projeto para durar no mínimo uns 50 anos, sabe? Meu sonho é, quando estiver bem velhinho, estar assistindo aos shows e encontrando as pessoas ali.”

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