Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Rússia Brics

Acordo nuclear foi um fracasso para os EUA, não para Lula, diz vice-chanceler do Irã

Em visita ao Brasil, Ali Bagheri Kani fala sobre busca por apoio para entrada no Brics e contemporiza atritos de seu país com Dilma e Bolsonaro

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O vice-chanceler Ali Bagheri Kani na Embaixada do Irã, em Brasília, durante entrevista à Folha Pedro Ladeira/Folhapress

Vice-ministro de Negócios Estrangeiros e principal negociador nuclear da República Islâmica do Irã, Ali Bagheri Kani desembarcou em Brasília na semana passada para conversar com o governo brasileiro sobre a candidatura do país iraniano ao Brics. O bloco reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

O vice-chanceler diz ter tido "ótimas conversas" com autoridades brasileiras. "Nós temos a intenção sincera de ser membros do Brics", destaca ele, em uma rara entrevista concedida à coluna. Para Kani, o grupo diplomático tem um papel fundamental para levar estabilidade a diversas regiões do mundo num momento em que transformações complexas estão em curso.

A cúpula do bloco se reunirá na África da Sul na próxima semana, ocasião em que deve ser discutida a adesão de novos países que já formalizaram o seu pedido de ingresso —como é o caso do Irã.

Kani recebeu a coluna na residência oficial da embaixada do Irã. Ao seu lado, sentado em um sofá branco, estava o embaixador do país em solo brasileiro, Hossein Gharibi. Dois tradutores e um secretário também o acompanhavam. Antes de adentrar a sala, a repórter foi lembrada de que, por ser mulher, não poderia estender a mão para cumprimentá-los, em respeito à tradição islâmica. Minutos depois, uma saudação do vice-chanceler dá início à conversa: "Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso".

O vice-chanceler Ali Bagheri Kani na Embaixada do Irã, em Brasília, durante entrevista à Folha - Pedro Ladeira/Folhapress

Diplomata desde 1990, Kani atuou como vice-secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã entre 2008 e 2013, período em que as sanções do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) contra o regime se intensificaram. Em 2013, foi coordenador da campanha presidencial de Saeed Jalili, então o principal negociador nuclear do país, que terminou a disputa em terceiro lugar.

O vice-chanceler rechaça a avaliação de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria fracassado ao tentar costurar um acordo entre Irã e Estados Unidos, em 2010, em torno do programa nuclear iraniano —e diz apoiar o governo brasileiro na busca pela construção da paz na Ucrânia.

Nesta entrevista, o vice-ministro ainda minimiza o mal-estar diplomático ocorrido em 2020, quando o então presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Ministério das Relações Exteriores apoiaram o ataque que matou o general iraniano Qassim Suleimani, contemporiza críticas feitas no passado a Dilma Rousseff (PT) e defende o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Quais são as razões para o Irã querer entrar no Brics?
Nós acreditamos que o multilateralismo é o caminho para a solução e para a estabilidade em vários lugares do mundo. E o Brics tem esse papel. Portanto, nós temos a intenção sincera de ser membros do Brics.

O Irã, durante essa visita, pediu apoio do Brasil para sua entrada no Brics?
Sim. Tivemos ótimas conversas com nossos amigos brasileiros para que nos apoiem no ingresso ao grupo.

O quão desgastada ficou a relação entre os dois países durante o governo de Jair Bolsonaro?
Os interesses em comum entre o Brasil e o Irã fazem com que os diferentes governos nos dois países não afetem as suas relações.

Pode haver diferenças de opiniões sobre várias questões, mas os interesses entre os dois fazem com que as relações entre eles sejam mantidas.

Em 2020, o governo Bolsonaro emitiu uma nota apoiando os EUA na ofensiva que matou o general Suleimani. Na ocasião, a representação do Brasil em Teerã foi chamada a se explicar sobre o posicionamento do Ministério das Relações Exteriores. O que foi dito nessa conversa?
Eu não estive presente nessa reunião.

O assassinato do general Suleimani foi algo muito evidente para o mundo todo. Isso é considerado um crime internacional.

O que aconteceu no Brasil não foi uma nota do governo brasileiro, mas, sim, uma simples mensagem, uma opinião no Twitter do ex-presidente [na verdade, houve uma nota oficial do Itamaraty]. Até mesmo o governo americano que sucedeu [o então presidente Donald] Trump também não apoiou o que o governo anterior tinha decidido fazer.

Em 2012, o porta-voz do Irã criticou a então presidente Dilma Rousseff, dizendo que ela havia destruído uma relação construída por anos entre os dois países. Ele também mencionou que o presidente Lula fazia falta [como mostrou a Folha na época, autoridades iranianas se queixavam de um distanciamento entre os dois países e passaram a vetar exportações brasileiras]. O que o presidente Lula tem que outros presidentes não têm?
A visão do presidente Lula sobre o multilateralismo, criticando os EUA. Esse é o principal ponto. A grande maioria dos analistas políticos internacionais apoiam a visão do presidente Lula, e é este ponto que fez com que as visões de ambos os países se aproximassem.

Essa visão fez com que o Brasil tivesse um papel mais ativo no grupo do Brics, até mesmo no governo passado [de Dilma Rousseff], e fez com que a ex-presidente fosse escolhida como a presidente do banco do Brics [o Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido pela sigla NDB]. Durante o governo Dilma, as relações entre ambos os países estavam ótimas.

Em fevereiro deste ano, o governo Lula permitiu que dois navios iranianos atracassem no país. O governo brasileiro acatou esse pedido apesar da oposição dos EUA, que dizia se tratar de uma provocação do Irã. Como o Irã recebeu esse gesto do Brasil? Foi mesmo uma provocação aos EUA?
O que o Irã fez? O Irã não fez nada demais. Foi algo natural e normal, algo que vários países já fazem, mas que com certeza representa uma força do Irã no âmbito marítimo.

A decisão do governo brasileiro demonstra a sua soberania e a sua independência. É muito natural que o Brasil esteja correndo atrás dos interesses do seu país, e ter boas relações com o Irã representa, sim, algo do interesse do povo brasileiro.

O Irã é um aliado da Rússia. Como o país vê a manutenção da guerra até agora?
Desde o início, a política do Irã foi contrária a essa guerra. E, até o momento, essa opinião continua. Nessa guerra, nós não estamos do lado de nenhum dos dois.

Nós apoiamos os canais diplomáticos para a solução. Não temos nenhum interesse na continuidade dessa guerra.

A guerra não é o caminho. A guerra não responde ao interesse e às necessidades das pessoas. Esta guerra deve acabar o quanto antes.

O que o Irã pensa sobre a tentativa do Brasil de protagonizar a busca pela paz?
Nós apoiamos qualquer iniciativa para o fim dessa guerra.

Pessoas que criticam a tentativa de protagonismo do governo Lula em relação à Ucrânia relembram o acordo nuclear de 2010, dizendo que ele não teria sido bem-sucedido e que o Brasil pode fracassar novamente ao lidar com a guerra. Como o senhor vê essa comparação?
Eu não acredito que o Brasil fracassou naquela época, porque a iniciativa do Brasil foi um passo em direção à solução de um problema. Essa iniciativa tinha sido aceita pelos dois lados. Foram os americanos que acabaram voltando atrás e não colocaram em prática as promessas que tinham feito para o Brasil.

Tanto a iniciativa do Brasil quanto a seriedade por parte do presidente da República da época [Lula] e também do ministro das Relações Exteriores da época [Celso Amorim] para se chegar a um acordo foram uma inovação e um sucesso.

Da mesma forma que o Trump deixou de seguir a resolução 2231 [do Conselho de Segurança da ONU] e saiu do acordo [com o Irã, que estabelecia limites para a sua indústria nuclear], o governo anterior, [de Barack] Obama, também tinha deixado de cumprir suas promessas para com o Brasil. Isso, com certeza, representa um fracasso para os americanos, não para vocês.

Baseado no que viu pessoalmente em 2010, quando era membro do grupo de negociadores do acordo, o senhor se diria otimista em relação à participação do Brasil nas tratativas pela paz na Ucrânia?
Nós temos, sim, uma visão positiva sobre qualquer iniciativa que possa terminar uma guerra entre dois países. Mas existem algumas frentes nesta guerra, especialmente os americanos, que não têm o mínimo interesse em finalizá-la. Os americanos até mesmo desconsideraram o plano dos chineses, a proposta da China.

O Brasil e o Irã estão comemorando 120 anos de relações bilaterais. Qual é a importância dessa conexão para o Irã neste momento e o que o país espera do Brasil para os próximos anos?
As relações entre o Irã e o Brasil são históricas, vêm de longa data. Tanto o Brasil quanto o Irã têm diferentes necessidades, e um pode completar o outro. Nós precisamos dos produtos agrícolas do Brasil, e o Brasil precisa dos derivados de energia do Irã.

As boas relações entre ambos os países não colocam em risco nenhuma outra relação, muito menos nenhuma nação.

Nós, como República Islâmica do Irã, temos o maior interesse em estabelecer, desenvolver e ampliar essas relações. E apoiamos o papel do Brasil na estabilidade internacional. Nós acreditamos que o Brasil e o Irã fazem parte de uma base da ordem de estabilidade mundial. Dentro desse limite, o Brasil e o Irã podem ser grandes parceiros.

É natural que essas relações façam inimigos, mas as lideranças de ambos os países são sábias e vão desconsiderar qualquer tentativa de intriga e afastamento desses amigos.

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