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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Zé Celso morreu de Brasil', diz Ricardo Bittencourt, ator do Teatro Oficina

Ele e Marcelo Drummond, viúvo do diretor teatral, falam sobre o legado do fundador do Oficina e lembram da briga com Silvio Santos

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Os atores Marcelo Drummond, viúvo de Zé Celso, e Ricardo Bittencourt, no Teatro Oficina, no Bexiga, região central de São Paulo - Zanone Fraissat / Folhapress

Sentado na plateia de frente para o janelão que virou símbolo do Teatro Oficina, no Bexiga, região central de São Paulo, o ator Marcelo Drummond reflete sobre o luto. "É engraçado porque parece que o luto não vai embora. Quer dizer, a gente se habitua a ele. Eu me habituei a uma certa tristeza, a uma certa dor", diz.

Há pouco mais de um ano, ele e o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa entravam naquele palco para oficializar a união de 36 anos juntos. Celebrado no dia 6 de junho de 2023, o casamento de Zé Celso e Marcelo reuniu artistas, personalidades e intelectuais em um "dos grandes momentos do Oficina", como disse na data o seu fundador.

Faz um ano também que Zé Celso morreu —foi exatamente um mês depois da festa, em 6 de julho de 2023. Para Marcelo, os sentimentos se confundem e se misturam: saudade, tristeza e também algumas alegrias.

"As coisas estão acontecendo, o parque [do Rio Bixiga] que ele queria está para sair, tem o desfile da Vai-Vai", enumera ele, em referência ao espaço verde e ao samba-enredo escolhido pela escola para homenagear o diretor e dramaturgo no Carnaval de 2025.

"Todo mundo fala do legado do Zé. O legado dele é esse, é o teatro. Um teatro que... não gosto da [palavra] ‘resistência’. É um teatro irresistível."

"E o Zé é uma figura muito viva, muito presente aqui", completa. De vez em quando, Marcelo diz que vem à sua memória as imagens do incêndio. No dia 4 de julho do ano passado, o apartamento em que o casal morava em São Paulo pegou fogo. Zé Celso morreu dois dias depois –ele teve 53% do corpo queimado no incêndio.

"Me lembro do Zé todo queimado. É uma imagem forte, ele saindo do fogo", recorda. "É uma coisa que me aperta [o peito]. Mas eu não fico segurando isso também. Eu cultuo o Zé de alguma forma."

A maior preocupação do ator é conseguir organizar o acervo deixado pelo diretor. "É o que mais me entusiasma", afirma. São materiais, destaca ele, que se cruzam com a história do Oficina, como textos, livros, cenários, figurinos, objetos de cena, peças nunca montadas, filmes.

Herdeiro legal da obra de Zé Celso, Marcelo diz ter consciência da responsabilidade do que tem em mãos e, portanto, não quer fazer algo mal feito. O seu desejo é que o acervo seja acessível e cumpra um objetivo social e cultural.

Esse trabalho, contudo, vem sendo desafiador, segundo ele, por dois motivos: faltam recursos financeiros e tempo. Um mês depois da morte do diretor, Marcelo já estava em cartaz no Oficina dirigindo "O Bailado do Deus Morto". Posteriormente, vieram outros trabalhos.

"Eu não parei, não pude. Queria poder parar e começar a mexer na obra do Zé para botar para fora, mas não consigo porque também tenho que viver. Eu recebo para fazer teatro", diz.

Do dia a dia, Marcelo conta que uma das coisas que mais sente falta são as brigas que tinha com Zé. Os conflitos, revela ele, eram comuns no trabalho, mas raros dentro de casa. "Eu sou terrível, chato. E ele não era fácil, era exigente", recorda.

Diz também sentir saudade de atividades rotineiras, como pensar no que iria preparar para o marido comer. "Nunca mais cozinhei depois que ele morreu. Prefiro comer fora."

O casamento dos dois, afirma, foi uma afronta ao etarismo. "Um cara de 86 anos e outro de 60 promoverem uma festona foi a maior provocação que a gente podia fazer."

A ideia da oficialização da união, porém, não agradou a Zé Celso logo de cara. Grande idealizador da celebração, o ator Ricardo Bittencourt conta que sempre se angustiou muito com questões práticas sobre o futuro do Oficina: com quem ficaria a gestão do teatro após a morte do seu fundador? Como o legado do diretor seria mantido?

"Eu acho que o Zé foi uma pessoa que não se relacionou nunca com o limite. Zé trabalhou num plano do impossível, e esse é um dos fatores de grandeza da sua obra: tornar o impossível possível", diz Ricardo. "Mas casar e ter um herdeiro significava encarar a finitude, encarar a morte. A minha interpretação é que a resistência dele ao casamento era por ter de encarar o limite da vida." Foi depois de algumas conversas, relata o ator, que Zé Celso embarcou na proposta da celebração.

O objetivo de promover uma grande festa foi também uma forma, diz Ricardo, de aproveitar a oportunidade para garantir um pouco mais de conforto para o casal por meio dos presentes dos convidados.

"Obviamente, a causa mortis do Zé é o incêndio. Mas Zé morreu de Brasil, de precariedade", diz o ator. Ele afirma que, até o último dia, o diretor sempre investiu todos os recursos que entravam no próprio Oficina e nas pessoas que atuavam no teatro. "Ele nunca teve grana para fazer uma reforma elétrica na casa, por exemplo."

"Quem divide tanto e não é herdeiro, termina faltando. Então, era evidente que eles viviam com dignidade, mas se tratando das pessoas que são, com a produção que sempre tiveram, era para terem um mínimo de conforto", diz Ricardo.

Para Marcelo, muito dessa escassez vem da briga do Oficina com o Grupo Silvio Santos. Por quatro décadas, Zé Celso lutou para que o dono do SBT não construísse no terreno vizinho ao espaço cultural, de propriedade do empresário, um empreendimento imobiliário.

"Faz mais de 30 anos que estamos em cartaz, com uma peça atrás da outra nesse teatro, e como não temos patrocínio?", questiona o viúvo. "É claro que, quando entramos em choque com o Grupo Silvio Santos, entramos em choque com os grupos financeiros, imobiliários, de comunicação."

"Isso determinou o isolamento do Zé. Não de público, porque o Oficina e o Zé sempre tiveram muito público. Mas essa classe que detém o dinheiro nos isolou."

O imbróglio pelo terreno está prestes a ter um fim. A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, no início deste mês, o projeto para a criação do Parque Municipal do Rio Bixiga. A Prefeitura de São Paulo pagará ao Grupo Silvio Santos R$ 64,3 milhões pela área de 11 mil metros quadrados. A verba é proveniente de um acordo judicial com a Uninove.

Em seus últimos dias de vida, Zé Celso vinha se dedicando à adaptação para o teatro do livro "A Queda do Céu", escrito pelo líder indígena Davi Kopenawa em coautoria com o antropólogo francês Bruce Albert.

Marcelo diz que tem a intenção de seguir com o projeto, mas não por ora. Para este ano já existem outros espetáculos previstos, como a reencenação de "Fausto", última peça escrita e dirigida por Zé Celso, que acaba de estrear em Salvador e tem Ricardo Bittencourt como protagonista.

Marcelo Drummond conta que muitos também pedem que o Oficina volte a remontar um dos grandes sucessos do grupo: "As Bacantes". Ele, contudo, tem dúvidas se seria possível porque vê o momento atual como "muito mais careta". "Se a Madonna causou aquele escândalo [em sua passagem pelo Brasil], imagina 'Bacantes'", afirma, entre risos.

Escrita pelo grego Eurípedes, a peça foi apresentada pela primeira vez pelo Oficina em 1995. Na montagem, a história da morte e do renascimento de Dionísio (vivido por Marcelo), deus do teatro, do vinho e do Carnaval, é recontada em ritmo carnavalesco e com muitas referências brasileiras.

A montagem teve grande repercussão na época. Na primeira versão, uma pessoa escolhida da plateia era despida pelos atores e ficava nua. Em uma das apresentações, o eleito foi Caetano Veloso.

Marcelo diz que Zé Celso já estava sentindo essa caretice do mundo atual e vinha contrariado também com a utilização da arte cênica para a manifestação de ideologias. "O teatro tem que ter a contradição. Não há certo nem errado, e o caminho é torto."

"No teatro, a gente podia tudo. Mas agora se um homem faz papel de mulher, dizem que não pode porque só trans pode fazer." Para ele, "esse lado identitário é muito difícil para o teatro" e vem acompanhado nos dias de hoje do risco de cancelamento.

"O teatro sempre teve o lugar da liberdade, o espaço em que você podia fazer o que você quisesse. E que nunca é verdade. É sempre uma mentira à vera", diz. "Então, o homem que se veste de mulher faz uma trans fake [falsa]. Mas o que não é fake no teatro?", questiona.

A arte teatral, na visão de Marcelo, está fora dessas regras não ditas. "O teatro está além disso", defende. "E não há nenhuma falta de respeito. Pelo contrário. É saber como fazer. Mas, de qualquer forma, estamos aqui fazendo teatro. Sem parar."

Para Ricardo Bittencourt, que se considera parte da família de Zé Celso e morava no apartamento que pegou fogo, a vida "ficou indiscutivelmente menor" sem a presença física do diretor e dramaturgo. "Dizem que os grandes líderes terminam não fazendo novas lideranças pelo narcisismo, pela vaidade. O Zé foi o oposto disso. Ele teve a capacidade de germinar."

"Terão mil Zés por aí. Você vai ouvir muita gente falando em nome de Zé, certamente contando histórias e vivências com ele, e são todos legítimos, porque Zé teve essa capacidade de transitar, de se doar."

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