O desabamento de um edifício em Rio das Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro, com a morte de uma criança de dois anos e de seu pai e vários feridos, revela uma das dimensões do problema habitacional, um caleidoscópio de múltiplas facetas. Trata-se de um drama que começou muito antes das milícias e que vai muito além delas.
Quando, em 2019, dois edifícios construídos pela milícia caíram em Muzema, matando 24 pessoas, o debate, como não podia deixar de ser, concentrou na crescente presença do crime no mercado imobiliário informal.
Muzema e Rio das Pedras são controladas pela milícia, que cobra taxas para dar “segurança” a moradores e comerciantes e exige pagamento por serviços essenciais como gás e transportes públicos.
Mais recentemente, ela entrou no “ramo imobiliário”, com a construção, ocupação e venda ou aluguel de moradias irregulares e, principalmente, com a grilagem, parcelamento de glebas e venda de lotes.
Produzem o que nem o Estado nem o mercado formal são capazes de entregar: uma moradia a preço e condições acessíveis para os mais pobres, ainda que precária.
Não é uma novidade no mundo do crime. As máfias italiana e americana, assim como os cartéis no México, sempre atuaram no lucrativo mercado imobiliário, que ainda se presta à lavagem de dinheiro. Isso precisa ser denunciado e combatido com rigor, ainda mais agora que conta com aliados em vários palácios governamentais.
Esse fato, no entanto, não pode obscurecer que a tragédia dessa semana nada tem a ver com milícias ou crime organizado. Ela resulta do tradicional processo de autoempreendimento ou autoconstrução da casa própria, expediente que, desde os anos 1940, tem sido a principal forma através da qual os trabalhadores de baixa renda “resolvem” seu problema de alojamento, na falta de política habitacional.
Esse processo corriqueiro ganhou nomes e personagens, em uma história que poderia ser feliz mas que acabou em tragédia. Genivan Gomes Macedo, 57 anos, pai de Natan, de 30 anos e avô de Maitê, de dois anos, as vítimas do desabamento, foi o responsável por edificar o prédio que desabou. Poderia ser um herói que garantiu uma moradia para toda a família, mas se tornou o culpado em uma engrenagem onde o esforço pessoal se esvai por falta de políticas públicas.
Genivan batalhou por 25 anos para conseguir uma moradia para sua família extensa e um local para o trabalho do filho. Migrante da Paraíba, Genivan comprou em 1996 um terreno em um loteamento irregular (não aprovado pela prefeitura) e nunca recebeu a escritura.
Conforme declarou à polícia, “foi construindo a casa aos poucos, em etapas, conforme ia conseguindo dinheiro, sem planta e sem profissionais qualificados”. Os fiscais da prefeitura nunca apareceram. Assistência técnica pública, que poderia assessorá-lo na construção, nunca existiu.
O prédio chegou ao 4º pavimento, mas a obra não chegou a ser concluída. No térreo, funcionava a LAN house de seu filho Natan, que morava no 1º andar com a esposa e filha. No 3º, mora sua outra filha, Nathaniela com o esposo Jonas. No 4º, vive sua ex-esposa, Antônia, com a filha Tatiana de outro casamento.
Genivan não morava mais na casa e queria voltar para a Paraíba. Após se separar, Antônia ficou responsável pelo prédio e não foram feitas mais obras no local. Por essa razão, o 2º pavimento estava vazio, sem acabamento, com tijolo aparente. Segundo seu depoimento, o prédio foi ocupado apenas por familiares, nunca foi alugado.
A construção vertical de Genivan é frequente nas comunidades pobres de metrópoles como o Rio e São Paulo. Após o intenso processo de expansão horizontal dessas cidades, na segunda metade do século 20, nas últimas décadas os assentamento precários vêm passando por um forte processo de adensamento e verticalização, que, na maioria dos casos, é promovida pelos próprios moradores para abrigar a família ou para o aluguel informal.
Pesquisa sobre mercado informal em favelas, realizada em 2018 pelo professor Pedro Abramo, do IPPUR/UFRJ, revelou que embora o número de favelas não tem crescido significativamente, no período recente, no Rio de Janeiro, elas têm se adensado intensamente. A verticalização é muito expressiva: 45% das edificações tem mais de três pavimentos.
Sem espaço para uma expansão horizontal da casa, a solução tem sido crescer para cima, laje sobre laje, para ampliar a área da edificação. Com a falta de terra, a venda ou aluguel de lajes tornou-se comum e um negócio lucrativo. Segundo Abramo, o aluguel médio de três cômodos em uma favela chega a quase R$ 500.
Construir uma casinha térrea sem projeto e profissional qualificado apresenta baixo risco, embora não garanta condições de habitabilidade. Já a edificação de um prédio de vários pavimentos, sem planejamento prévio, projeto de fundação e de estrutura e assistência técnica, como está sendo feito nos assentamentos precários, traz evidentes riscos de vida.
Em um país onde cerca de 75% das moradias foram edificadas de forma precária, a criação de programas públicos de assistência técnica em habitação é indispensável para enfrentar problemas como ocorreu em Rio das Pedras.
Há décadas, as entidades profissionais de arquitetura e urbanismo lutam nessa perspectiva. Em 2008, foi sancionada a lei 11.888/2008, de abrangência nacional, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica gratuita para construção e reforma de moradias de habitação de interesse social. Mas, por falta de iniciativas públicas, as experiências realizadas ainda são pontuais e isoladas, fruto de uma militância de quem defende um urbanismo social.
Um dos exemplos públicos mais bem-sucedidos foi realizado no Distrito Federal a partir de 2016. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab-DF) criou um programa que chegou a ter dez postos de atendimento habitacional em comunidades pobres da periferia, que desenvolvem projetos e apoiam a execução de obras de melhorias ou de reconstrução de moradias. Até hoje, foram atendidas cerca de 500 famílias, com resultados expressivos. É ainda pouco, mas mostra que é possível.
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), disse que “não vai permitir mais construções irregulares na cidade (...) A gente está deixando uma bem clara uma mensagem para a população, acabou essa história de tanta construção irregular”.
Meras bravatas. Construções como a de Genivan fazem parte da estratégia de sobrevivência dos mais pobres e não deixarão de existir. Ao invés de ameaçar a população com afirmações que não têm como cumprir, Paes precisa formular um programa amplo e massivo de assistência técnica em habitação para evitar tragédia como a de Rio das Pedras.
Talvez possa se inspirar em iniciativas realizadas no próprio Rio de Janeiro, como o Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), de iniciativa do IAB-RJ, que na década passado realizou um importante, embora restrito, trabalho de assistência técnica em favelas cariocas.
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