Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Requalifica Centro: um bom projeto que Ricardo Nunes e Milton Leite querem transformar em boiada

Programa pretende facilitar a reabilitação de edifícios antigos no centro histórico de São Paulo

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Só mesmo um viés autoritário ou uma intenção maligna ainda oculta pode explicar por que a gestão Ricardo Nunes e sua base na Câmara Municipal de São Paulo está transformando em uma boiada “à la Ricardo Sales” o Requalifica Centro, uma proposta que pretende facilitar a reabilitação de edifícios antigos no centro histórico.

É consensual a necessidade de flexibilizar as regras urbanísticas e edilícias para estimular o retrofit, termo em inglês utilizado para designar o processo de modernização de edifícios obsoletos que não cumprem sua função social, especialmente para viabilizar sua transformação em habitação. Se fosse debatida e aperfeiçoada democraticamente, ela poderia ser apoiada por todos os setores da sociedade.

No entanto, ao invés de promover um debate sadio sobre a proposta, cuja complexidade exige uma análise aprofundada, a gestão quer aprovar o Projeto de Lei 447/2021 a toque a caixa, como se fosse uma boiada indesejada. Vejam a cronologia escandalosa da tramitação desse projeto, aprovado 50 horas depois de dar entrada no legislativo.

  1. Dia 5/7, às 23:36h, o prefeito Ricardo Nunes enviou o projeto de lei criando o Programa Requalifica Centro para a Câmara, sem ter anunciado que estava elaborando a proposta, sem ter realizado consulta pública nem debatido no Conselho Municipal de Política Urbana, como determina a lei
  2. Dia 6/7, às 17:11h, o PL, que ganha o número 447/2021, é considerado como lido no plenário da Câmara e encaminhado para publicação no Diário Oficial. Às 19:34h, o Presidente da Câmara, Milton Leite, designa as cinco comissões que deveriam analisar a proposta
  3. Dia 7/7, às 12:43h, a prefeitura envia ao legislativo um pedido de tramitação em “regime de urgência”. A Comissão de Constituição e Justiça, às 12:53h, designa um relator, mas Leite o inclui na pauta de votação das sessões extraordinárias do próprio dia 7/7, interrompendo sua tramitação normal
  4. Durante as sessões do dia 7/7 e da madrugada do dia 8/7 (no total, elas duraram quase doze horas), um Congresso de Comissões aprovou o PL, sem efetivamente debatê-lo
  5. Em seguida, às 1:43h do dia 8/7 (isso mesmo, no meio da madrugada), o PL 447/2021 foi aprovado em 1ª votação, com 38 votos a favor, um a mais que o necessário
  6. Para cumprir formalmente a exigência legal, foi convocada uma audiência pública para 10h da manhã de sábado (10/7), ou seja, entre o feriado de 6ª feira e o final de semana
  7. Dia 10/9, as 0:46h, é apresentado um requerimento de redução de dez para cinco dias do interstício entre a 1ª e a 2ª votação
  8. Embora estivesse marcada para as 10h do dia 10/7, a audiência pública do PL 447/2021 apenas se iniciou às 13 horas e ocorreu durante o horário de almoço, com baixíssima participação da sociedade
  9. Vencida essa tramitação formal, a Câmara Municipal tem a intenção de aprovar o PL em 2ª votação nessa semana

A maneira autoritária e açodada com que o projeto foi tratado pela base governista é um demonstrativo de como a atual gestão quer enfrentar o debate urbanístico e a revisão do Plano Diretor. É uma forma temerária que não gerará bons resultados. Se esse método for adiante, a única alternativa será a judicialização, que prejudicaria até mesmo iniciativas positivas, como poderia ser a proposta do Requalifica Centro.

Trata-se de um projeto importante que venho defendendo há bastante tempo como necessário para implementar o Plano Diretor Estratégico (ver, entre outras, a coluna de 22/3/2021). As principais cidades do mundo contam com regras especificas para facilitar o "retrofit" e São Paulo está muito atrasada em relação à essa questão.

O “retrofit” de edifícios obsoletos e ociosos é uma ação que dialoga com vários dos objetivos do Plano Diretor de 2014, como combater os imóveis ociosos e subutilizados, reabilitar os bairros centrais, produzir habitação em áreas consolidadas e aproximar a moradia das oportunidades de trabalho.

Dialoga também com um dos objetivos da política habitacional: reformar os edifícios abandonados que foram ocupados pelo movimentos sociais, transformando-os em moradia digna.

No artigo 27º, inciso XVIII, o Plano Diretor é explicito e propõe “estimular a reabilitação do patrimônio arquitetônico, especialmente na área central, criando regras e parâmetros que facilitem a reciclagem e retrofit das edificações para novos usos”.

Depois de demorar inacreditáveis sete anos para regulamentar esse inciso, o executivo e o legislativo querem aprovar em uma semana, um Projeto de Lei complexo que, embora esteja no caminho certo, é insuficiente para gerar os efeitos que dela se espera.

A proposta cria uma série de isenções fiscais (IPTU, ISS, ITBI e outorga onerosa) para proprietários de edifícios que proponham retrofit, facilitando a aprovação de projetos com maior flexibilidade nas regras urbanísticas e edilícias, assim como nas normas de segurança e acessibilidade.

Como mostrou a reportagem da Folha, a prefeitura lançou nos últimos trinta anos inúmeros programas e projetos para reabilitar a área central, mas os resultados foram tímidos. Para não ter o mesmo resultado, o Programa Requalifica Centro precisa ser analisado, debatido e aperfeiçoado. Dentre os aspectos que precisam ser considerados no PL 447/2021, poderíamos citar, preliminarmente:

  1. Avaliar a ampliação do perímetro da proposta, limitado a 2,1km2 nos distritos de Sé e Republica, considerando que existe uma coroa de bairros no entorno do centro histórico, como o Brás, Pari, Bom Retiro, Santa Cecilia, Bela Vista, Liberdade e Mooca, que tem um número expressivo de edifícios nas mesmas condições que o centro
  2. Analisar o impacto fiscal das isenções propostas, aspecto que sequer é tratado no PL, vis a vis com a possibilidade de ampliação do perímetro do incentivo
  3. Ampliar os incentivos para o retrofit de edifícios cujo objetivo é produzir habitação de interesse social (HIS), de modo a estimular esse uso, considerando que a maioria das isenções fiscais propostas já existem para a HIS
  4. Tratar o retrofit de edifícios ocupados por movimentos de moradia de forma diferenciada, considerando suas peculiaridades e a possibilidade de se promover formas inovadoras de gestão
  5. Considerar a possibilidade de reconstrução integral de edifícios com a mesma volumetria das construções antigas, no caso de se comprovar a impossibilidade de reabilitação, mesmo que os parâmetros urbanísticos estejam em desacordo com a atual legislação

Esses são apenas alguns dos aspectos que merecem uma análise aprofundada, com mais tempo e debates. Não há razão, senão interesses ocultos, para não se discutir democraticamente uma lei tão importante para a cidade e que demorou tanto para ser proposta. Espera-se que os vereadores de São Paulo não queiram ser sócios de mais uma boiada, como as que estão envergonhando o Brasil.

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