Aceitei o desafio de integrar o Gabinete de Transição do novo governo por entender que a eleição de Lula, liderando uma frente ampla pela democracia, abre uma nova oportunidade para formulação de uma política transformadora para as cidades brasileiras.
Devido a esse compromisso, devo interromper a coluna, agradecendo a oportunidade oferecida pela Folha para apresentar aos seus leitores minha visão sobre os rumos da gestão urbana no Brasil e, particularmente, em São Paulo, objeto privilegiado das minhas pesquisas e análises.
Em colunas anteriores, como "Enfrentando a desigualdade e a emergência climática, Lula pode promover um Green New Deal urbano", "Como Lula pode aprimorar o Minha Casa Minha Vida" e "Como a ciência pode contribuir para a reconstrução e transformação das cidades brasileiras", apontei algumas diretrizes programáticas para as cidades.
Em síntese, o governo federal deve se empenhar para promover uma mudança do modelo insustentável (social e ambientalmente) de desenvolvimento urbano brasileiro, que se consolidou no século 20.
Os objetivos centrais devem ser a redução das desigualdades urbanas e a transição ecológica e climática nas cidades.
Para isso, os programas urbanos apoiados e financiados pelo governo federal (habitação, mobilidade e saneamento) devem ser integrados e articulados com a política urbana, ambiental e econômica, para garantir o direito à cidade (água, infraestrutura, moradia, mobilidade e conectividade), ao mesmo tempo de se relacionar com o crescimento econômico e geração de emprego e renda.
Para dar bons resultados, deve ser evitada a setorização e fragmentação das intervenções, como ocorre na profusão de emendas parlamentares promovidas pelo atual governo, que consumem cerca de 66% do orçamento do Ministério de Desenvolvimento Regional, que incorporou a política urbana.
A criação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU), para promover uma nova articulação interfederativa, orientando e integrando políticas urbanas nos territórios, com base em uma nova Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, é elemento central nessa estratégia.
O SNDU deverá apoiar e financiar intervenções urbanas considerando a capacidade dos demais entes federativos, induzindo os municípios a adotarem os instrumentos de Reforma Urbana e de planejamento inclusivo para garantir a função social da propriedade, o combate a especulação e a captura da valorização imobiliária gerada por investimentos públicos.
As intervenções deverão considerar a diversidade regional, dos biomas e da rede de municípios, assim como as questões de gênero, raça e orientação sexual. Esses objetivos estão relacionados com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com à Nova Agenda Urbana da ONU.
Os programas habitacionais devem priorizar a baixa renda, com subsídios e financiamento acessível, como foi o Minha Casa Minha Vida. Mas tem que avançar em relação a esse programa. As soluções, materiais e técnicas utilizadas devem ser mais bem apropriadas à diversidade urbana e regional do país.
Os projetos devem ser inseridos na cidade e articulados aos objetivos dos planos diretores, para reduzir a segregação e aproximar moradia do trabalho, estudo e lazer, diminuindo os deslocamentos motorizados.
Além de unidades prontas, um leque variado de alternativas deve ser apoiado, como o retrofit e locação social nos centros urbanos, lotes urbanizados com material e assistência técnica (Athis) onde houver disponibilidade de terra e empreendimentos autogeridos onde há grupos organizados.
As terras públicas devem ser utilizadas, sobretudo, para habitação social, equipamentos e espaço público, interrompendo-se a privatização do patrimônio da União. Estados e municípios devem ser induzidos a fazer o mesmo.
A redução das desigualdades requer um robusto programa em territórios vulneráveis, como periferias, favelas e assentamentos precários, com intervenções integradas de regularização fundiária, urbanização, infraestrutura, saneamento, mobilidade, eliminação de risco, melhorias habitacionais, qualificação de áreas públicas e verdes, equipamentos sociais e assistência técnica.
A universalização do acesso à água e ao saneamento deve ser uma prioridade, o que requer investimentos públicos em assentamentos precários e na zona rural, onde se concentra o deficit. Os recursos oriundos das concessões dos serviços ao setor privado devem ser aplicados obrigatoriamente nessas áreas.
A regulação dos serviços de saneamento deve garantir tarifas compatíveis com a capacidade de pagamento da população e assegurar volume mínimo emergencial de água para todos os domicílios, em qualquer situação.
Na mobilidade, os investimentos federais devem se concentrar no transporte coletivo, concentrando-se na ampliação do transporte de média e alta capacidade eletrificado (metrô, trens e BRT).
Devem ser apoiadas a implantação de faixas exclusivas de ônibus e a mobilidade ativa, com ciclovias, travessias e calçadas acessíveis. A redução da violência no trânsito deve voltar a ser uma diretriz, depois da barbárie do último governo.
Buscar alternativas para enfrentar a crise de financiamento do transporte coletivo, para garantir a organização do sistema e melhorar a qualidade dos serviços, é premente.
A redução as emissões de CO2 na mobilidade, assim como na cadeia da construção civil, é central na descarbonização das cidades. Todos os programas financiados pelo governo federal devem adotar soluções que dialogam com a transição climática e energética.
Na gestão dos resíduos sólidos, a partir do princípio dos 5R (repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar), deve ser enfrentado o desafio de garantir a destinação adequada dos resíduos, fomentar a recuperação energética por processos biológicos e a compostagem dos orgânicos e ampliar a reciclagem e a logística reversa, incorporando os catadores no sistema de manejo. Incentivar a produção mais limpa.
Adaptar as cidades para enfrentar os eventos extremos gerados pela emergência climática é outro desafio. Para tanto, é necessário investir na drenagem urbana, em obras de contenção de encostas, melhoria habitacional e recuperação da cobertura vegetal em área de risco. Os serviços de alertas e prevenção, assim como a defesa civil e os núcleos comunitários, devem ser fortalecidos.
A transição ecológica pode promover uma alteração gradativa do modelo de desenvolvimento urbano, incorporando soluções baseadas na natureza e a geração de ambientes mais saudáveis e sustentáveis.
Nada disso será possível se não forem criadas as condições institucionais, operacionais e financeiras para implementar a política urbana proposta.
A estruturação de um ministério voltado especificamente para a política urbana e territorial, com o papel de coordenar a Política e o Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, assim como fortalecer o controle social e a participação popular, é essencial.
Não se trata simplesmente de recriar o Ministério das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades, mas de criar novas estruturas institucionais que, baseadas na experiência anterior, possam inovar na gestão urbana. É o que defenderemos na transição.
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