As tensões em torno da jurisdição constitucional brasileira têm se acirrado nos últimos anos, ora com o sistema político, ora com setores da sociedade ou mesmo com outras instâncias do Poder Judiciário. Essas tensões são, em alguma medida, inerentes às democracias constitucionais contemporâneas, nas quais o exercício da autoridade tem como fonte de legitimidade não apenas a vontade da maioria, mas também o respeito aos direitos fundamentais e ao próprio Estado de direito. A ambição das democracias de regular esferas cada vez mais amplas da vida leva, necessariamente, a uma ampliação do poder de quem é responsável por aplicar a lei.
As tensões em torno da jurisdição constitucional brasileira têm, no entanto, dinâmicas que lhe são próprias. Em primeiro lugar, a enorme pretensão do texto constitucional de 1988 sobrecarregou o órgão responsável pela sua defesa. Essa sobrecarga foi ampliada pela concentração de competências nas mãos de uma única instância jurisdicional que, em outras democracias, encontram-se distribuídas entre múltiplas jurisdições. Aqui não. O Supremo não só exerce a função de tribunal constitucional como acumula as funções de corte de cassação e tribunal especial de primeira instância para julgar políticos; além de participar diretamente na gestão do Tribunal Superior Eleitoral e do Conselho Nacional de Justiça.
Por outro lado, as tensões com o Supremo são agravadas pela incapacidade do sistema político de resolver consensualmente problemas que afetam a vida em sociedade e o próprio funcionamento do Estado —que vão do casamento entre pessoas do mesmo sexo até a guerra fiscal—, vindo o Supremo a ser sistematicamente convocado pelos próprios partidos políticos para suprir as falhas e omissões do sistema político. Adicione-se a isso o baixo grau de integridade dos atores políticos, o que impõe ao Supremo a espinhosa tarefa de policiar desvios éticos e jurídicos de parlamentares e governantes, com um alto custo para sua jurisdição.
Há, ainda, um problema mais grave a comprometer as relações do Supremo com setores da sociedade. Testemunhamos nas últimas décadas uma forte transformação nos valores mais essenciais de parcelas significativas da sociedade. O fortalecimento do conservadorismo moral e a ascensão de uma teologia da prosperidade individualista, associados a um forte e legítimo ressentimento por elevados índices de violência, levaram a um paulatino descolamento desses setores e seus representantes em relação ao pacto constitucional, marcado pelo "progressismo", pluralismo e abertura moral. A intensificação das agressões da direita conservadora e autoritária ao Supremo são, na realidade, uma ofensiva contra o pacto constitucional de 1988.
Por fim, é necessário reconhecer que o Supremo também contribui para o declínio de sua própria autoridade. A sobrecarga de temas de alta voltagem sobre seus ombros gerou um perigoso afrouxamento de sua capacidade de agir com imparcialidade, distanciamento, acatamento, objetividade, consistência e rigor na aplicação do direito. Esses problemas foram aprofundados pela erosão da colegialidade e pela forma voluntariosa com que alguns gabinetes passaram a funcionar. O fato é que a ampliação dos poderes do Supremo deu-se em detrimento de sua autoridade judicial.
Ao assumir um papel central na defesa da democracia brasileira nos últimos anos, o Supremo conquistou uma oportunidade única de recuperar ou reconstruir a sua autoridade judicial. Para isso precisará, paradoxalmente, conter e partilhar parcela do poder conquistado nos últimos anos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.