Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Transmitir o som do público em estádios vazios é sinistro e comovente

Nós precisamos mesmo da companhia uns dos outros, a ponto de nos enganarmos a nós próprios

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Em certo ponto de “O Amor nos Tempos de Cólera”, o doutor Juvenal Urbino vai ao banheiro e Fermina Daza aproveita para refletir sobre o fato de ele ser o primeiro homem que ela ouviu urinar.

Creio que, quando li o livro, não soube como interpretar o episódio. Não fazia ideia de que uma mulher desse atenção ao som da urina de um homem e tivesse interesse em contabilizar quantos homens teria ouvido urinar, e por que ordem.

Mas, neste ano, por causa da pandemia, o episódio ocorreu-me quando vi que, em estádios de futebol e pavilhões de snooker, por exemplo, a organização mitigava o fato de os recintos estarem vazios emitindo o som da multidão. Não há espectadores a ver os jogos, mas ouvimos o barulho que eles fariam se lá estivessem.

Não os ouvimos urinar, mas é evidente que o ruído humano nos faz falta.

Ilustração de cadeira com a frase "gritos de solidão"
Luiza Pannunzio/Folhapress

A decisão de transmitir o som do público em estádios vazios é simultaneamente sinistra e comovente. É sinistra porque vemos o estádio vazio, arrepiantemente vazio, mas ouvimos o barulho do estádio cheio. Um dos nossos sentidos nos mostra a verdade, mas outro tenta nos enganar. É uma manobra desesperadamente infantil —e é por isso que deixa de ser sinistra e passa a ser comovente.

Nós precisamos mesmo da companhia uns dos outros, a ponto de nos enganarmos a nós próprios. Alguém, nos bastidores de um evento esportivo, tem o dedo num botão, e o aperta sempre que lhe parece que a multidão se manifestaria. A propósito das incidências do jogo, um ser humano supõe que outros seres humanos se emocionariam e aciona o dispositivo. É uma espécie de bomba nuclear às avessas: alguém aperta um botão e nascem pessoas.

Se o público se organizar em sindicato, nunca mais ninguém paga um bilhete na vida. Como é que alguém se atreverá a nos cobrar dinheiro para assistir a uma partida de futebol se nós vamos ao estádio prestar um serviço? Vamos produzir o precioso ruído humano, sem o qual os jogadores jogam pior e os espectadores em casa se divertem menos. A gente engrandece o espectáculo e ainda paga. Não faz sentido.

A partir de agora, o meu ruidoso entusiasmo está à venda. Dois mil reais por decibel. Parece-me justo.

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