Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu greve dos caminhoneiros

Brasil faz a crise entrar em crise

Greve e locaute, palavras nascidas em conflitos do século 19, pedem socorro

Toda crise política e social é uma crise de linguagem. As palavras são convocadas a dar conta de uma realidade em transformação e vacilam. Tentam se adaptar, mas algumas se aposentam enquanto outras são tiradas às pressas do forno, quando novas, ou de prateleiras empoeiradas, quando andavam em desuso. 

Na aurora dos movimentos trabalhistas, no início do século 19, a língua francesa se viu diante de uma nova demanda: como nomear um tipo de protesto coletivo de grande impacto social em que os trabalhadores cruzavam os braços até terem suas reivindicações atendidas.

Lúdica, a linguagem trabalha com o que tem à mão. Recorreu então ao nome de uma praça parisiense à beira do Sena, onde funcionava o mais animado porto da cidade e onde multidões de desempregados se reuniam toda manhã, atrás de ocupações temporárias.

De piso arenoso, o local era conhecido desde o século 12 como Place de Grève (hoje Place de l'Hôtel-de-Ville). O novo sentido de "grève" (originalmente "praia, terreno de areia ou cascalho à beira-mar ou beira-rio") ganhou seu primeiro registro em 1805.

Não é clara a natureza da associação entre a nova forma de protesto e a praça. Há quem diga que os grevistas se reuniam lá e há quem aposte num elo metafórico entre os que cruzavam os braços e os desocupados do lugar. O certo é que nascia ali uma palavra fundamental para a compreensão do mundo moderno.

Mais tarde, em meados do século 19, uma nova crise de linguagem viu surgir, agora no inglês, uma palavra necessária para batizar um movimento ao mesmo tempo semelhante e distinto da greve.

"Lockout", que importamos na forma aportuguesada "locaute", nomeava uma interrupção do trabalho provocada não por empregados mas por patrões, como forma de pressão em disputas com sindicatos ou governos. Seu sentido original é o de trancar do lado de fora, impedir o acesso dos operários à fábrica.

Se a greve sempre gozou de excelente saúde no mundo das palavras, o locaute pegava poeira no almoxarifado até ser resgatado e espanado em nossa tentativa de compreender o que acontece no país desde o início da semana passada.

Mistura de greve legítima com locaute criminoso? Salada mista de insatisfações difusas, como as que explodiram em 2013? Colônia de fungos oportunistas a se espalhar sobre a carcaça de um governo putrefato? Tudo isso parece parte da explicação.

No entanto, fica evidente que novas formulações ainda precisam surgir para dar conta de papalvos que pedem de joelhos "intervenção militar" (olha a crise da linguagem de novo, tentando nos vender esse eufemismo grosseiro para "golpe"). 

Se é notícia velha que crises políticas e sociais se fazem acompanhar de crises de linguagem, a novidade talvez venha do fato de que as crises no Brasil não têm fim, cada uma trazendo a seguinte em sua rabeira como lenços de papel puxados da caixinha.

Isso faz com que a própria palavra "crise" entre em crise. Desde o grego, ela sempre carregou o sentido de "momento decisivo". Traz embutida a ideia de culminância de um processo, de algo que vai piorando aos poucos e de repente fica insustentável. 

O desfecho pode trazer alívio ou mais sofrimento, não vem ao caso. Em sua pureza etimológica, a crise é sempre aguda, momentânea. Quando passa a ser tão espichada que se torna tediosamente confiável, esperada, seu sentido entra em crise.

Pode estar aí uma contribuição brasileira original —​e até brilhante, em seu volteio metalinguístico—​ ​​​ ​ à crise de linguagem que mora no coração de toda crise.

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