Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Quando o mentiroso é a mentira

Bolsonaro reafirmou no JN seu compromisso inegociável com a cascata

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A entrevista do presidente Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional foi insatisfatória sob diversos aspectos, mas teve o mérito de condensar em 40 minutos aquilo que deu sustentação a seus quase quatro anos de governo: o compromisso inegociável com a mentira, a fraude, a cascata.

Como fenômeno de linguagem, a mentira é complexa, situada no terreno movediço da representação. Há mentira, ou erro, quando a linguagem representa mal a realidade. No entanto, o que é a realidade se as palavras não apenas nomeiam coisas preexistentes, mas também as constituem?

Como fato do dia a dia, a mentira é algo bem mais simples, quase sempre indiscutível, como sabe qualquer criança quando mente sobre quem chutou a bola que quebrou a vidraça, acusando o irmão mais novo. Ela pode até convencer todo mundo (com a provável exceção do irmão injustamente acusado), mas sabe que é mentirosa.

Jair Bolsonaro na bancada do Jornal Nacional com os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos
Jair Bolsonaro na bancada do Jornal Nacional com os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos - Marcos Serra -22.ago.22/TV Globo/AFP

Entre a dimensão filosófica e a dimensão pragmática da lorota há um campo vasto. É ali que a linguagem política sempre deitou e rolou, com seu leque de claros-escuros em que figuram a omissão, a meia verdade, a mentira supostamente bem-intencionada, a hipocrisia, a calúnia contra o adversário etc.

O fato é que, sem algum grau de potoca, caô, conversa fiada, o discurso político —como o diplomático e, pensando bem, o amoroso— seria insustentável. Mas o compromisso de Bolsonaro com a falsidade tem um grau incomparavelmente mais elevado.

O presidente que os brasileiros elegeram em 2018 é um dos maiores representantes mundiais da era da "pós-verdade", que, na forma inglesa "post-truth", foi eleita a palavra do ano de 2016 pelo prestigioso dicionário Oxford.

O que houve em 2016 para que o Oxford desse tanto cartaz à pós-verdade? Nada menos que a eleição de Donald Trump, super-herói de Bolsonaro e surfista principal do tsunami de fake news —nome de uma forma mais estruturada, encorpada e programática de patranha— que varreu o mundo.

Esse tsunami mudou a cara do planeta e veio na esteira da devastação que, há cerca de dez anos, a rede-socialização de tudo tinha passado a promover na complexa arquitetura de verdades socialmente aceitas que sustentava o pacto democrático.

De repente, livre do "monopólio da informação" exercido por instituições —sem dúvida falíveis, mas historicamente testadas— como academia e imprensa, o mundo despirocou. No Brasil e em outros países, o populismo de extrema direita foi o grande beneficiário do surto.

A Terra ficou plana, a Covid virou gripezinha, a vacina passou a matar, o tio do Zap desandou a humilhar o ganhador do Nobel e a culpa de todos os males passou a ser dos governadores e do STF.

Também de repente, Bolsonaro nunca xingou os ministros desse mesmo STF e, claro, jamais fez imitações jocosas de pessoas morrendo com falta de ar, embora haja vídeos que o mostrem fazendo exatamente isso ao alcance de um clique.

Houve quem fizesse contas para garantir que o presidente mentiu 40 vezes diante de William Bonner e Renata Vasconcellos, o que dá uma mentira por minuto de entrevista. Se for isso mesmo, é pouco.

Mais do que mentir o tempo todo, Bolsonaro é a própria mentira. Sem ela, desmancha no ar. O presidente do Brasil poderia dizer aquilo que o escritor Franz Kafka disse de si mesmo, trocando literatura por mentira: "Eu não minto. Sou feito de mentira, não sou nada além disso e não posso aspirar a ser nada além disso".

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